Publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)
POR TIAGO ANGELO
Contrariando decisão do Superior Tribunal de Justiça, o juiz Arnaldo Luiz Zasso Valderrama, da 1ª Vara Criminal de Fernandópolis (SP), manteve uma mulher presa em regime fechado por mais de um ano e seis meses.
A paciente foi sentenciada em 2018 a cinco anos de reclusão por tráfico de drogas e teve, no mesmo ano, a condenação mantida pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em abril de 2019, no entanto, a 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça julgou Habeas Corpus e determinou que a mulher fosse colocada em prisão domiciliar. A decisão, que teve o ministro Reynaldo Soares da Fonseca como relator, levou em conta o fato do crime ter sido cometido sem violência ou grave ameaça e da ré ser mãe de criança com menos de 12 anos (tinha apenas três quando da decisão).
A despeito da determinação, o juízo originário deixou de expedir alvará de soltura afirmando que a decisão do STJ foi dada no sentido de converter em domiciliar apenas a prisão preventiva da mulher, ignorando que a corte superior fala claramente que trata-se de um caso em que já houve condenação em duas instâncias.
“Deixo de determinar a expedição de alvará de soltura da ré posto que a decisão do STJ foi no sentido de converter a prisão preventiva da ré em domiciliar, porém, com o trânsito em julgado do acórdão, que ocorreu em 15 de abril de 2019, a prisão passou a ser definitiva, não havendo mais que falar em prisão domiciliar”, disse Valderrama.
A juíza Renata Biagioni, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 3ª Região Administrativa Judiciária (Deecrim-3ª Raj) decidiu no mesmo sentido. Em um primeiro momento a magistrada chegou a expedir o alvará, mas voltou atrás depois de ser notificada pela unidade prisional de que a decisão do STJ seria apenas no sentido de converter a preventiva em domiciliar, algo que teria perdido o efeito depois do trânsito em julgado.
A advocacia salvando o dia
Não se sabe se o primeiro advogado da mulher abandonou ou teve que deixar de atuar no processo. Fato é que a prisão em regime fechado, que ignorou o STJ, passou despercebida. Como não houve recurso na corte, apenas o HC, o caso transitou em julgado em 2019.
A maré só começou a virar em agosto deste ano, quando um segundo advogado entrou em cena de um modo curioso. Trata-se de Daniel Ciscon, que atua em Araraquara, no interior de São Paulo.
Segundo contou à ConJur, ele se deparou com a decisão do STJ quando estava pesquisando a jurisprudência das cortes superiores no que diz respeito à concessão de domiciliares para mães de crianças com menos de 12 anos.
O advogado não soube explicar bem o motivo de ter baixado o processo inteiro para saber que fim teve a concessão de domiciliar. Mas o fez e viu que a determinação não foi seguida.
O primeira reação foi peticionar na Vara de Execuções para informar sobre o que considerou a manutenção de uma prisão injusta. No entanto, não obteve resultado. Ainda sem ser advogado do caso, juntou petição também no HC dado pelo STJ.
“Por uma questão burocrática, de normas processuais e regimento interno do STJ, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca entendeu que a minha petição deveria ser autuada à parte, como uma reclamação constitucional. Quando há afronta à decisão do STJ, o meio cabível é a reclamação constitucional. Ele depois deu um despacho para que eu juntasse procuração, porque na reclamação, ao contrário do HC, precisa de procuração”, explica.
Ele procurou a paciente, conseguiu que ela assinasse o documento e passou a trabalhar gratuitamente no caso. Finalmente como advogado constituído, foi formalmente ao STJ. O ministro Fonseca deu nova ordem, confirmando que a primeira decisão não se tratava de mera conversão de preventiva em domiciliar.
“A leitura do acórdão desta corte apontado como descumprido deixa claro que deveria ser dada uma interpretação extensiva tanto ao julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal no HC coletivo 143.641, que somente tratava da prisão preventiva de mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos, quanto ao artigo 318-A do Código de Processo Penal, para autorizar também a concessão de prisão domiciliar às rés em execução provisória da pena”, afirmou o ministro do STJ em sua nova decisão, proferida em 2 de agosto deste ano.
Fonseca também ressaltou que os mesmos fundamentos que justificam a concessão da prisão domiciliar durante a fase de execução provisória da pena se prestam a amparar o benefício na fase de execução definitiva.
Na segunda-feira (5/10), mais de um ano e seis meses depois da primeira decisão do STJ, a ordem foi finalmente cumprida e a mulher foi transferida para o regime domiciliar. Por causa do descumprimento e do prazo, o advogado buscará reparação para a paciente.
“Quando me deparei com este processo, não podia deixar de atuar em favor da liberdade. Isso está no sangue do advogado. Li o processo mais de uma vez, para conseguir acreditar que realmente a decisão do STJ não fora cumprida pelo juiz de origem”, disse Ciscon à ConJur.
Ainda segundo ele, o caso demonstra que a Justiça Criminal é falha e elitista. “Agora que a decisão do STJ foi finalmente cumprida, iremos buscar a responsabilização do Estado pela grave ilegalidade cometida. Felizmente pude atuar neste caso para fazer cessar essa ilegalidade”, conclui.
HC 487.763
Reclamação 40.676