Publicado originalmente na BBC Brasil.
POR MÁRCIA CARMO
Aqui em Buenos Aires, antes da Copa do Mundo começar, cada vez que os argentinos percebiam que estavam conversando com uma brasileira, diziam: “Como você conseguiu deixar aquele país? Amo o Brasil”.
Para muitos deles, agora está sendo uma surpresa saber que a rivalidade dos torcedores brasileiros com os argentinos parece extrapolar os estádios.
“Acho que vocês não gostam da gente”, disse um bancário e jogador de rúgbi, de 35 anos, que trabalha no bairro de Palermo.
Uma comerciante, de 30 anos, dona de uma lan house, aqui ao lado de casa, no mesmo bairro, disse frase parecida no dia seguinte à vitória da Argentina sobre a Bélgica, no estádio Mané Garrincha, em Brasília: “Foi uma surpresa ver os brasileiros com camiseta da Suíça em São Paulo e de novo torcendo contra a gente em Brasília. Não sabia que os brasileiros não gostavam da gente”.
O sorriso que surgia só por estar diante de um brasileiro agora parece ter sido substituído por um certo incômodo, com as histórias de brasileiros torcendo contra a Argentina, ainda mais agora depois de o Brasil ter sido eliminado da Copa.
Na realidade, a rivalidade não parece ser mútua – além dos estádios. Sim, é verdade que especialmente após a vitória sobre a Holanda eles recordam o 7 a 1 sofrido pelo Brasil contra a Alemanha.
Foi assim na festa que realizaram na concentração no Obelisco, no centro da cidade, até a madrugada desta quinta-feira, depois da vitória na Arena Corinthians.
Um dos torcedores argentinos de batina, como a do Papa Francisco, escreveu nas costas da roupa bege: 7 x 1. E mostrou, rindo, sete dedos quando percebeu que falava com uma brasileira. A gozação aumentou nas últimas horas. Mas, pelo menos aqui, sempre dentro do espírito do futebol.
Há muitos mal entendidos entre um e outro, brasileiros e argentinos, decorrente, talvez, da barreira dos idiomas, que acaba passando uma impressão falsa de provocação.
Professores de português e de espanhol costumam dizer que o português tem mais fonemas que o espanhol, e que, por isso, não é fácil de ser compreendido pelos argentinos. Ou seja, é mais fácil um brasileiro entender o que eles falam do que o contrário. De certa forma, eles mal ficam a par de nossas piadas.
Ao mesmo tempo, historiadores afirmam que, para os argentinos, o rival – em qualquer âmbito – é a Inglaterra. Não o Brasil. O motivo? A guerra em 1982 pelas Ilhas Malvinas, Falklands para os ingleses.
Já sobre o nosso país, no imaginário coletivo argentino, o Brasil é sinônimo de paraíso. O lugar dominado não só pelas belezas naturais, mas por pessoas de bem com a vida. Tudo o que muitos confessam desejar na vida. E que não têm como ter aqui. Seja pelo frio, pela maior dramaticidade com que encaram o cotidiano ou pela história de sobe e desce na política e na economia da Argentina.
‘Quero nascer pernambucana’
“Na minha próxima vida quero nascer pernambucana”, disse uma médica da clínica Swiss Medical, no bairro nobre de Palermo Chico. Por quê? “Quero ser como vocês. Não ter vergonha de usar biquíni mesmo quando estiver com barriguinha. Quero que meu marido e meus filhos não se sintam mal usando sunga”.
O meu professor de ioga não viajou para a Copa. Achou muito caro para o bolso dele. Mas antes e depois de o Mundial começar, disse e continua dizendo. “Eu acho que não sou daqui de Buenos Aires. É no Rio que me sinto em casa. Sou contagiado por aquele astral”.
É fato que turistas brasileiros chegam aqui e parecem encantados. “Eles nos tratam muito bem”, costumam dizer.
Mas também já vi aqui alguns brasileiros dizendo “grosso” após serem atendidos por algum comerciante local. Para os argentinos, “groso” é, porém, sinônimo de poderoso. Por questões culturais, os argentinos – especialmente os que têm mais de 60 anos – parecem mesmo ter alma de tango. Poucos sorrisos, poucas palavras e certo tom dramático ou seco – demais, para nós brasileiros.
Tal atitude, somada de fato a um certo ar de superioridade – quando a Argentina estava entre os mais ricos do mundo – os fez atuar como se estivessem no lugar errado e não sendo parte da América Latina.
Mas esse comportamento “arrogante” mudou depois da crise de 2001. E os que têm hoje em torno dos 30 anos, como o bancário, a comerciante e o professor de ioga, não entendem por que os chamam de arrogantes. “Sério? Arrogantes? Como assim?”, perguntou a arquiteta Maria Eugenia, de 37 anos, que costuma viajar nas férias para o sul do Brasil.
‘Somos bonitos e importantes’
Com o típico humor portenho, o ator Ricardo Darín, 57 anos, astro do cinema argentino, respondeu quando lhe perguntei sobre essa arrogância: “É que somos muito importantes”. Pensei, hum, arrogante mesmo. Metido. Mas aí ele completou:
“Importantes, inteligentes e bonitos. No te parece? (Você não acha?”). E sorriu. Era uma “broma” (“brincadeira”).
Mas demorei a entender. O humor deles ─ que para nós acaba passando a falsa imagem de arrogância ─ não é como o nosso, mais explícito. É mais irônico, mais “inglês” – o que, por si só, também é um ironia, dada a real rivalidade com os ingleses.
O próprio papa Francisco é conhecido, dos tempos em que ele era cardeal, pelas frases desconcertantes, ditas sem qualquer sinal de sorriso.
Já quando o assunto é futebol, os argentinos são bem menos refinados.
Para provocar os torcedores brasileiros, nesta Copa, um grupo de oito amigos criou o hit Brasil decime qué si siente, com o refrão: Maradona é melhor que Pelé.
Diga-se que o hit pegou muito antes de os brasileiros usarem camisetas de outras seleções que jogaram contra a Argentina na Copa.
Mas agora os criadores da canção, mesmo sem serem perguntados, explicam que foi uma “broma” típica de futebol. “Não imaginávamos que alguns brasileiros levassem a mal, que pensassem que era provocação além do estádio, além do futebol”, disse um deles.
Fora dos gramados, os argentinos continuam fazendo festa em cada partida da Argentina. Eles parecem retratar o personagem do cartunista Rep, do jornalPágina 12, que vive deprimido em Buenos Aires, mas cai na folia quando chega ao Brasil.
Seja como for, um comentarista de uma TV argentina resumiu assim a intensidade da rivalidade na reta final desta Copa:
“A coisa está ficando brava. Por via das dúvidas, é melhor reforçarem a segurança na final no Maracanã”. E uma apresentadora disse, nesta quinta: “é difícil entender como brasileiros torcerão pela Alemanha. Mas não foi da Alemanha que levaram sete gols?”.