Agora é o momento perfeito para abolir a monarquia. Por Ben Burgis

Atualizado em 9 de setembro de 2022 às 16:36

Texto publicado originalmente em Jacobin

A falecida rainha Elizabeth II do Reino Unido
Foto: Reprodução

Por Ben Burgis

Qualquer pessoa pode ficar confusa com o espetáculo dos conservadores professando seu amor pela monarquia britânica. Dois dias antes de Donald Trump deixar o cargo, sua “Comissão de 1776” elogiou a Declaração de Independência como um documento historicamente importante que tornou os EUA uma nação “única”. Durante o governo Obama, a iconografia da luta revolucionária dos EUA contra a Coroa Britânica era tão difundida que a ala direita do Partido Republicano se autodenominava “Tea Party”.

No entanto, quando Meghan Markle e o príncipe Harry criticaram a família real em uma entrevista recente com Oprah Winfrey, a resposta de algumas figuras em instituições conservadoras foi saudar a mesma instituição contra a qual os fundadores dos EUA estavam se rebelando em 1776.

Várias defesas da monarquia apareceram em publicações como a Federalist e a National Review. A Heritage Foundation organizou um evento virtual intitulado “The Crown Under Fire: Why the Left’s Campaign to Cancel the Monarchy and Undermine a Cornerstone of Western Democracy will Fail” [“A coroa sob fogo cruzado: por que a campanha da esquerda para cancelar a monarquia e minar uma pedra angular da democracia ocidental falhará”].

É difícil ler isso sem pensar nos slogans oficiais de propaganda do partido no poder no romance 1984, de George Orwell. Guerra é paz! Liberdade é escravidão! A monarquia é uma pedra angular da democracia!

Christopher Hitchens vs. National Review

A clássica declaração contra a monarquia é o panfleto de 1990 de Christopher Hitchens: “A Monarquia: Uma Crítica do Fetiche Favorito da Grã-Bretanha”. Enquanto Hitchens se desviaria para a direita uma década depois em reação aos ataques terroristas de 11 de setembro, em 1990, ele era um socialista dedicado – e um dos melhores escritores da esquerda.

Ao longo do panfleto, “Hitch” desmonta alegremente as defesas da monarquia, apontando, por exemplo, que os mesmos apologistas que insistem que nenhum dano está sendo feito à democracia britânica por ter as funções cerimoniais de chefes de Estado executados por monarcas hereditários impotentes dirão que a realeza usa “o poder que eles têm” para boas causas.

Se você não vê o ponto dele, imagine se alguém lhe disser isso amanhã: “De agora em diante, você terá uma ‘audiência’ privada semanal com o primeiro-ministro ou presidente ou chanceler de sua nação, e se você insinuar que você estava descontente com esse funcionário, seria considerado uma grande notícia. Ah, e a qualquer hora que você quisesse, você poderia provocar uma crise constitucional negando sua aprovação a uma lei, embora você corresse o risco de perder seu status fazendo isso.” Você consideraria isso uma diminuição ou aumento na quantidade de poder político que você exerce como cidadão privado?

Aqueles que argumentam que a monarquia constitucional não é uma forma de governo particularmente censurável costumam dizer que uma sociedade com “realeza” não é pior do que uma com celebridades ricas, mas o que Hitchens aponta é uma clara desanalogia. Você pode argumentar que o nível de investimento emocional que algumas pessoas comuns podem ter na vida de atores e estrelas pop que nunca conhecerão não é saudável, e certamente pode argumentar que grande parte da riqueza desses atores e estrelas pop deveria ser redistribuída, mas Beyoncé e a rainha Elizabeth simplesmente não exercem quantidades comparáveis de poder.

Em um artigo da National Review intitulado “An American Defense of Britain’s Constitutional Monarchy” [“Uma defesa americana da monarquia constitucional britânica”], Joseph Loconte, da Heritage Foundation, critica a “esquerda” e a “esquerda radical” por sua hostilidade à monarquia. Ele não cita Hitchens, nem nenhum escritor de esquerda mais recente. O único antimonarquista que ele menciona pelo nome é… Maximiliano Robespierre. Ele contrasta as aspirações do revolucionário francês por um “amanhecer de felicidade universal” com a história supostamente gloriosa do “constitucionalismo” da monarquia.

A estratégia de Loconte é dar crédito aos monarcas britânicos por cada concessão duramente conquistada já extraída deles por nobres rebeldes (a Magna Carta) ou por forças populares (sufrágio universal). Referindo-se ao primeiro, Loconte diz que “a monarquia concordou que nenhum líder político estava acima do Estado de direito”. O equivalente aproximado seria dizer que “a General Motors concordou em reconhecer o sindicato da United Auto Workers” ou “a Confederação concordou em Appomattox em se juntar aos EUA”.

Da mesma forma, na sua apologia à “democracia parlamentar”, Loconte não acha apropriado mencionar todos os cartistas que morreram ou foram presos ou exilados lutando pelo direito dos homens da classe trabalhadora britânica de votar nas eleições parlamentares, ou as sufragistas que lutaram no início do século XX para estender esse direito às mulheres. No mundo real, essas lutas foram travadas contra o establishment britânico liderado pela família real.

Esse apegamento bizarro atinge seu apogeu quando Loconte discute a Guerra Civil Inglesa.

Quando o rei Carlos I tentou governar sem o Parlamento, ele desencadeou uma crise constitucional. Embora houvesse outras questões em jogo, a Guerra Civil Inglesa (1642-1651) foi uma luta existencial entre o absolutismo político e o constitucionalismo. No final, Thomas Hobbes e seu Leviatã perderam a discussão. Nas décadas que se seguiram, a Inglaterra tornou-se o epicentro dos mais importantes debates ocorridos em qualquer lugar sobre os direitos inalienáveis da humanidade: liberdade de expressão, de imprensa, o direito de reunião e o direito de adorar a Deus de acordo com os ditames da consciência.

Embora eu sinta uma obrigação profissional de apontar que as opiniões reais de Hobbes sobre a monarquia eram mais complicadas do que essa passagem sugere, o verdadeiro crime de Loconte contra a história é muito mais simples. Ele deixa de fora o fato de que a vitória do constitucionalismo, neste caso, significou que as forças parlamentares decapitaram Carlos e aboliram temporariamente a monarquia.

Discutindo a Revolução Americana, Loconte afirma que a guerra foi travada por americanos para recuperar nossos “‘direitos estabelecidos’ como ingleses”. Ele evita citar a Declaração de Independência, que é inteiramente enquadrada como uma acusação contra “o atual rei da Grã-Bretanha”. Tampouco menciona os argumentos contra a própria ideia de monarquia hereditária em um dos textos mais importantes dessa luta, o Senso Comum de Thomas Paine. Em vez disso, ele diz que, ao elaborar a Constituição, os fundadores foram influenciados por Montesquieu, um “teórico francês que prezava pelo exemplo inglês” de constitucionalismo.

Então, na verdade, se você pensar bastante sobre isso, uma revolução bem-sucedida para derrubar o domínio da monarquia britânica redundou no crédito para a… monarquia da Grã-Bretanha. Isso certamente teria sido uma surpresa para todos no início dos EUA, onde o insulto mais tóxico que os jeffersonianos podiam lançar contra Alexander Hamilton era que ele era um criptomonarquista.

Loconte até encontra uma maneira torturante de creditar à monarquia a abolição da escravidão. Os monarcas da Grã-Bretanha supervisionavam um vasto comércio de escravos? Claro, mas “a monarquia, como guardiã da Igreja da Inglaterra, acabou sendo confrontada pela consciência cristã do parlamento”, que se livrou do tráfico de escravos. Mesmo deixando de lado o papel extirpado das rebeliões de escravos caribenhos neste relato, a ginástica verbal exibida aqui é notável. O Parlamento acabou com a escravidão no Império Britânico graças à família real porque polemistas anti-escravistas usavam linguagem religiosa e o rei era o chefe da Igreja? Ou alguma coisa?

As defesas mais sérias da monarquia geralmente giram em torno da ideia de que a instituição forneceu “estabilidade e continuidade” ao mesmo tempo em que permitiu que as instituições democráticas evoluíssem. Mesmo aí, porém, Christopher Hitchens nos dá um lembrete devastador de quão pouco essas ideias se assemelham à história real da monarquia, desde a Guerra Civil Inglesa até o reinado de Eduardo VIII, que foi forçado a renunciar não por causa de suas simpatias pró-nazistas, mas porque ele queria se casar com uma atriz divorciada.

O número de vezes que uma “sucessão” real foi pacífica ou resultou em “estabilidade” é relativamente pequeno. Entre a execução do rei Carlos I na Banqueting House em janeiro de 1649, por exemplo, e a extinção da causa jacobina em Culloden em 1746, nem o próprio Thomas Hobbes conseguiu entender completamente o princípio monárquico. Continuou tendo que ser reinventado à força e, de fato, precisou de repetidas infusões dos já enfraquecidos príncipes do continente europeu.

Não é considerado nada educado insistir neste fato, mas apenas um exercício de risível absolutismo moral em 1936 impediu (por acidente, admito, mas então todas as coisas baseadas no princípio hereditário são por acidente) a adesão de um jovem com pronunciada simpatia para o Nacional Socialismo. O ex-Eduardo VIII, como duque de Windsor, foi uma preocupação e um constrangimento permanentes para o governo britânico durante a Segunda Guerra Mundial, e parece nunca ter abandonado sua convicção de que Hitler tinha razão. Se as coisas tivessem ido para o outro lado, ele era um candidato a fornecer estabilidade e continuidade a um regime imposto por estrangeiros de um tipo bem diferente.

Por que abolir a monarquia é importante

Tudo isso é reviver a história antiga. A monarquia pode ter uma história extraordinariamente feia, mas agora – mesmo se pararmos de afirmar que a realeza não tem “nenhum” poder político – o papel que desempenham é principalmente simbólico.

Hitchens novamente fornece uma perspectiva útil. “É uma definição insignificante da vida ‘política’ de uma nação”, escreve Hitch, “que não inclui o costumeiro, o tribal, o ritualístico e o comemorativo”.

Para entender seu ponto de vista, pense nas controvérsias do verão passado sobre a remoção de estátuas confederadas. Concentrar-se demais em questões meramente simbólicas pode ser uma distração inútil, mas é realmente obsceno forçar os descendentes de escravizados a serem confrontados com estátuas gigantes que homenageiam monstros pró-escravidão como Robert E. Lee. Na medida em que o papel da família real é meramente simbólico, devemos perguntar o que eles simbolizam e se este é um símbolo que uma sociedade democrática do século XXI deve defender.

Uma coisa que eles simbolizam é toda a história que Loconte tão desajeitadamente tenta silenciar – algumas das quais são bastante recentes. A Elizabeth II, que faleceu hoje, concedeu recentemente a Ordem do Império Britânico aos soldados que realizaram o massacre do Domingo Sangrento na Irlanda. E se a história é toda sobre a simbolização da monarquia, isso já os tornaria versões vivas muito caras de estátuas confederadas que mereciam ser derrubadas.

Mas eles também simbolizam uma hierarquia brutal. Eles são os herdeiros dos privilégios hereditários. É por isso que os conservadores do mundo inteiro se sentem instintivamente protetores da instituição.

A ideia de que qualquer ser humano mereceria ter um papel dentro de uma instituição estatal puramente por causa de sua linhagem é ofensiva pela mesma razão que é ofensivo vivermos em um mundo onde algumas pessoas nascem na riqueza e outras na pobreza. Se o Estado britânico parasse de celebrar essa ideia odiosa, o resultado poderia não ser um “amanhecer de felicidade universal”. Mas seria um começo mais decente.

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