“Agradeça a contravenção”: a falta de transparência na parceria da Globo com os bicheiros do Carnaval

Atualizado em 20 de fevereiro de 2015 às 13:11
Boni prestigia o título de 2015 com o bicheiro Aniz Abrahão David, dono da Beija Flor
Boni prestigia o título de 2015 com o bicheiro Aniz Abrahão David, dono da Beija Flor

 

O Jornal Nacional de quinta-feira não surpreendeu quem esperava que os atores principais, William Bonner e Renata Vasconcellos, fossem tocar nos assuntos mais palpitantes da semana: o título da Beija Flor e o escândalo do HSBC.

Nem uma palavra sobre os dois temas. No caso do banco, sabe-se que sonegação é uma questão, para usar um eufemismo, delicada para a Globo.

No do Carnaval carioca, a situação é igualmente embaraçosa, por motivos outros: a Globo é “sócia” daquilo tudo há décadas.

Nunca antes na história desse país um campeonato momesco foi tão contestado — no Brasil e no exterior. Foi preciso o patrocínio de um ditador africano para muita gente se perguntar o óbvio: como pode um desfile bancado pelo crime há tanto tempo?

Mais: como fica a Globo, detentora dos direitos de transmissão há tanto tempo, diante dessa pilantragem?

A relação da emissora com os bicheiros é de, para usar outro eufemismo, cumplicidade. Há reuniões para decidir estratégias comerciais. A Globo vende cotas da transmissão. As escolas não podem, por exemplo, ter uma marca que conflite com um parceiro da TV.

A Marquês de Sapucaí é transformada numa sucursal do Projac, com todos os atores e atrizes sambando. Dezenas de jornalistas são mobilizados para a cobertura de um megaevento promovido pela empresa para a qual trabalham.

Para ficar apenas na Beija Flor: em 2014, o enredo foi em homenagem a Boni, o ex-homem forte da Globo. A relação é íntima. O bicheiro Anísio Abrahão David, “patrono” da escola, comprou a cobertura tríplice de Roberto Marinho na Avenida Atlântica, em Copacabana.

É impossível que a Globo não soubesse de antemão o que a Beija Flor, ou qualquer outra agremiação, fosse fazer na avenida. Quando o escândalo de Teodoro Obiang estourou, ficou difícil evitá-lo. E então a cobertura jornalística foi a mais esquizofrênica possível.

Só no final da participação da Beija Flor na Sapucaí Fátima Bernardes mencionou que a Guiné Equatorial era um país “ainda em busca de suas liberdades” e que o presidente estava no poder há 35 anos. Nem pensar em chamá-lo “ditador”.

Na Globo News, a mesma saia justa. Entre matérias idiotas sobre dietas de Momo, os comentaristas falavam do financiamento. Merval Pereira achou uma solução: toda a negociação começou quando Lula visitou o país durante seu governo. Segundo Merval, é um esquema parecido com o que o PT faz nas campanhas. Curiosamente, é a maneira como a Globo noticia, eventualmente, o HSBC: sua suposta ligação com a Lava Jato.

“Se não fosse dinheiro da contravenção, hoje não teríamos o maior espetáculo audiovisual do planeta. Agradeça à contravenção”, disse Neguinho da Beija Flor, num sincericídio necessário. “A Portela também teve um patrocínio muito forte. O governador do Rio de Janeiro, o Pezão, queria que a Portela ganhasse. E ele não fez algum investimento? O prefeito (Eduardo Paes) é portelense doente. Vai dizer que ele não colocou dinheiro na Portela?”

Uma discussão séria sobre a transparência e o dinheiro sujo do Carnaval carioca passa pelo papel da Globo na pilantragem.