Publicado no blog de Marcelo Auler
Em manifestação apresentada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia Geral da União (AGU) sustenta que o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Luiz Mendonça, ao propor a abertura de um inquérito policial, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), contra o chargista Renato Aroeira e o jornalista Ricardo Noblat, “agiu amparado pela legislação de regência”. Segundo as Informações levadas à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 697), a atitude de Mendonça foi decorrente do seu entendimento “que a manifestação artística ultrapassou os limites da liberdade de expressão e atingiu negativamente a honra e a imagem do Presidente da República”.
Em uma nova iniciativa, que demonstra que o Governo Bolsonaro continuará recorrendo ao uso de um resquício da ditadura brasileira – a LSN – para perseguir jornalistas, o ministro Mendonça, na segunda-feira, anunciou a mesma medida adotada contra Aroeira e Noblat para o jornalista da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman. Tudo por conta do polêmico artigo Por que torço para que Bolsonaro morra. Uma demonstração de que o governo não aceita lidar com opiniões diferentes
A ADPF 697, impetrada, em 18 de junho pelos advogados da Rede de Sustentabilidade, tenta impedir o inquérito contra Aroeira e Noblat. A Rede entende que jornalistas e chargistas – logo, também Schwartsman – não podem ser “perseguidos pelo aparelho estatal simplesmente por cumprirem suas funções”. O partido considera ainda que “dado o evidente caráter humorístico da charge de Aroeira reproduzida por Noblat, é inconcebível considerar que ela represente lesão ou perigo de lesão a qualquer dos bens jurídicos resguardados pela Lei de Segurança Nacional “.
Os advogados Levi Borges de Oliveira Veríssimo, Bruno Lunardi Gonçalves, Cassio dos Santos Araújo, Filipe Torri da Rosa, Kamila Rodrigues Rosenda, juntos com o senador da Rede-ES, também advogado, Fabiano Contarato, classificam como “aparelhamento da máquina policial” a utilização da Polícia Federal “para investigar jornalistas que publicam atos que desagradam o governo”. Para eles, esta decisão configura “violação à liberdade de expressão (art. 5º, incisos IV e IX, e art. 220 da CF), à liberdade de imprensa (art. 5º, inc. IX, da CF) e ao próprio Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CF).”
Discussão sobre o remédio (ADPF) usado
Elaboradas pela advogada da União Alyne Gonzaga de Souza, aprovadas pelo consultor-geral da União substituto, Giordano da Silva Rossetto e, por fim, adotadas pelo advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, as informações prestadas ao Supremo no dia 1 de julho, em momento algum explicaram o motivo de o ministro da Justiça apelar para a Lei de Segurança Nacional (LSN). A preocupação maior foi apresentar o respaldo legal da iniciativa do ministro em solicitar o inquérito. Também questionaram o uso de uma ADPF para barrar o inquérito.
Para rebater aqueles que criticaram o ministro da Justiça por ter tomado a iniciativa de pedir a abertura de inquérito – inclusive esse BLOG, admita-se – as Informações da AGU ao STF reproduzem as explicações apresentadas pela Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça. Nela, destaca-se que pelo Código Penal, os crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação -, terão as penas agravadas em até um terço se forem cometidos “(I) contra o presidente da República ou contra chefe de governo estrangeiro; (II) contra funcionário público, em razão de suas funções”.
Em ambos os casos, como rege o artigo 145, não havendo lesões corporais, a instauração de qualquer procedimento depende diretamente de queixa. No caso do funcionário público, o próprio é que deve apresentá-la. Mas em se tratando do presidente da República ou chefe de governo estrangeiro, “procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça”. O parecer da consultoria jurídica conclui:
“O Ministro da Justiça e Segurança Pública, ao requisitar a instauração do procedimento policial para investigar os fatos, agiu amparado por expressa disposição legal e, após o regular trâmite do inquérito policial, caberá ao MPF propor a ação penal correspondente e ao Judiciário analisar se os limites da liberdade de expressão foram ultrapassados“. (grifo do original)
Além de sustentar a legalidade da iniciativa do ministro, as Informações da AGU tentam derrubar as pretensões da Rede de Sustentabilidade alegando a inadequação da ADPF. Segundo afirmam e insistem, “o instrumento processual adequado para impugnar a instauração de inquérito policial é o habeas corpus”. Ao erro do instrumento usado eles somam o erro do tribunal para esse debate. Garantem que “para o trancamento do procedimento policial em questão, o instrumento processual adequado seria a impetração de habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, conforme disposto na alínea “b” do inciso I do art. 105 da Constituição Federal.”
Em um entendimento limitado do que venham a ser as ameaças à liberdade de imprensa, a AGU sustenta que no caso, “por qualquer ângulo de análise, não se sustentam as alegações autorais de descumprimento ou afronta a normas ou preceitos constitucionais“.
Alegam a inexistência de censura e sustentam o direito de o presidente recorrer ao Judiciário, como previsto na Constituição, por terem sido atingidas “a própria dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III da CF/88), assim como a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF/88)”.
Estas, segundo o documento, são “balizas para o regular exercício da liberdade de expressão e manifestação do pensamento”. Nas Informações, a AGU defende que o primado da Liberdade de Imprensa “precisa dialogar e harmonizar-se com os demais preceitos e fundamentos da Carta Magna.”
Leitura parcial da ADPF 130
Recorrendo à famosa decisão da ADPF 130, pela qual o PDT, através do então deputado Miro Teixeira, questionou a recepção da antiga Lei de Imprensa pela Constituição de 1988, o documento da AGU apresentado na ADPF 697 ressalta que, “no entendimento da Suprema Corte, a censura vedada pelo §2º do art. 220 da CF/88 consubstancia-se no cerceamento estatal prévio do conteúdo que se almeja ver publicado ou divulgado, circunstância que, de modo algum, inibe eventual controle posterior que possa, inclusive, conduzir à responsabilização do agente que – abusando ou fazendo mau uso de suas liberdades – venha a afrontar a dignidade, intimidade, honra, imagem ou vida privada de outrem.”
Há uma tentativa de escamotear a questão. Ninguém em sã consciência discute o direito de aqueles que se sentem atingidos por alguma publicação recorrerem ao Judiciário em busca de reparação, indenização e até mesmo de uma condenação criminal do(s) autor(es) do que foi publicado. Não é o que se apresenta no caso. Na realidade há uma tentativa de intimidar jornalista pela crítica feita, que desagradou.
O que a AGU não diz é que, repetidamente, o próprio Supremo, em diversos julgados, deixou claro que os direitos à “dignidade, intimidade, honra, imagem ou vida privada”, como alegam no documento, não é algo tão absoluto, tal como exposto. Muito menos para os chamados “agentes públicos”, como é o caso do presidente da República. Esses, pela função que exercem, precisam se acostumar com as críticas. Como o próprio Supremo defende, desde a decisão desta ADPF 130, em 2009.
Isso, aliás, consta do mesmo voto da usado em parte pela AGU. Ao que parece, não lhe interessou abordar a questão do peso diferenciado dos direitos pessoais diante do direito coletivo à informação. Foi feita uma leitura parcial do voto.
A AGU não expõe, por exemplo, que para os ministros do Supremo, o papel da imprensa é de ser crítica. Tal como consta do voto do ministro Carlos Ayres Britto, relator da ADPF 130, cujo voto foi acolhido por todos:
“O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e ‘real alternativa à versão oficial dos fatos‘”. (grifamos)
Cabe ainda destacar que, desde aquele mesmo julgamento, em 2009, o ministro Celso de Mello, hoje decano do STF, repete à exaustão a famosa Declaração de Chapultepec, aprovada em 1994, no Castelo de Chapultepec, situado no centro da Cidade do México, durante a Conferência Hemisférica sobre liberdade de expressão. Carta de Princípio que o Brasil incorporou oficialmente. Nela conta:
“IV – O assassinato, o terrorismo, o sequestro, as pressões, a intimidação, a prisão injusta dos jornalistas, a destruição material dos meios de comunicação, qualquer tipo de violência e impunidade dos agressores, afetam seriamente a liberdade de expressão e de imprensa. Esses atos devem ser investigados com presteza e punidos severamente. (…) (grifamos)
X – Nenhum meio de comunicação ou jornalista deve ser sancionado por difundir a verdade, criticar ou fazer denúncias contra o poder público.“
Logo, no regime democrático de direito não cabe acionar judicialmente jornalistas por conta de críticas que tenha feito. Menos ainda recorrer à esdrúxula Lei de Segurança Nacional, resquício da ditadura militar. Fazer isso significa uma “intimidação” que visa atingir não apenas aos alvos da medida – nos casos, Aroeira, Noblat e Schwartsman -, mas a toda uma categoria. Ataca-se assim, de forma dissimulada, a Liberdade de Expressão. Tenta se impor o medo, na vã tentativa de se promover a autocensura.
Deve-se destacar que em vários julgamentos, ministros de diferentes pensamentos dentro do STF mantiveram o mesmo tom com relação ao papel crítico da imprensa e, consequentemente, dos jornalistas. Como noticiamos em Ao perseguir Aroeira, Mendonça ignora decisões do STF onde quer sentar, a ministra Rosa Weber, em decisão de junho de 2014, sintetizou o entendimento naquela corte:
“Não tem a imprensa livre, por definição, compromisso com uma suposta neutralidade, e, no dia que eventualmente vier a tê-lo, já não será mais livre“.
Tentativas frustradas
No caso específico de Aroeira não é a primeira vez que a sua arte mordaz envolve Jair Bolsonaro com a suástica. Em duas oportunidades anteriores, ele sofreu as mesmas ameaças de processos em consequência de desenhos publicados no jornal O Dia, do Rio de Janeiro. Em ambos casos a pretensão foi tiro n’água, justamente por conta do direito constitucional à Liberdade de Expressão e de Imprensa. Direito reconhecido em primeiro grau. Mas, ao que parece, a lição não foi aprendida.
A primeira tentativa do ainda deputado federal Bolsonaro processar o chargista foi pelo desenho publicado em 26 de abril de 2016 (ilustração acima). Na ação (0171549-17.2016.8.19.0001) que tramitou na da 41ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, alegou “que a publicação lhe ofendeu a honra e denegriu sua imagem, com o intuito de acirrar ânimos já desfavoráveis à sua pessoa”. Pedia uma indenização de R$ 50 mil.
Como noticiou o site Jota, especializado em notícias jurídicas, em 12 de outubro de 2018 – Charge que associa Bolsonaro a nazismo não gera dever de indenizar – prevaleceu o entendimento de que a charge se encaixava dentro do direito constitucional à Liberdade de Expressão.
Na decisão (leia aqui), o entendimento da juíza Camilla Prado foi de que a publicação, apesar de tecer crítica ao deputado enquanto pessoa pública, não lhe imputou a prática de qualquer crime. Ela lembrou, inclusive, que como a defesa de Aroeira demonstrou, Bolsonaro, figura pública e atuante no cenário político brasileiro, recebia o apoio “de grupos e segmentos da sociedade que se identificam com o movimento nazista”. Da sentença extraímos:
Da análise do conjunto probatório trazido aos autos, e do contexto histórico e político que se desenhava à época da publicação, infere-se que a charge humorística contra a qual se insurge o autor não contém conotação ofensiva que pudesse acarretar prejuízo à sua moral. Como se vê da imagem de fl. 22, desenho artístico produzido pelo cartunista Renato Aroeira, houve a associação do autor ao símbolo da cruz suástica, que historicamente representa o movimento nazista, tendência política existente em várias partes do mundo. A charge veio na esteira de outras matérias jornalísticas, como demonstrou a ré às fls. 79/85, em que se noticiava o apoio manifestado ao autor, figura pública e atuante no cenário político brasileiro, de grupos e segmentos da sociedade que se identificam com o movimento nazista, portando seus símbolos, insígnias e características distintivas. A publicação jornalística, apesar de tecer crítica ao autor, enquanto pessoa pública, não lhe imputou a prática de crimes. Traçou paralelo entre sua posição política, amplamente divulgada e pelo mesmo assumida, e outra tendência igualmente política. A ré exerceu seu ofício de informar ao público, tecendo crítica, comportamento esteado na garantia constitucional da livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação (art. 5º, IV, IX e XIV). (…) Dessa forma, tem-se por não cometido ato ilícito, pelo que não há que se falar em responsabilidade a ensejar obrigação de reparar, por ausentes os requisitos legais ensejadores da responsabilidade civil. Por todo o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão do autor.
Em janeiro de 2019 a iniciativa de investir contra Aroeira partiu da Federação Israelita do Rio de Janeiro (Fierj) que apresentou notícia crime junto à Procuradoria da República do Rio de Janeiro por conta da charge que envolvia o já presidente empossado Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu com o símbolo nazista.
O documento protocolado no dia 15 de janeiro levou as assinaturas do vice-presidente da entidade, Arnon Velmovitsky, do diretor jurídico, Rodrigo Fux, filho do ministro do STF Luiz Fux, e da advogada Rachel Glatt.
A queixa novamente esbarrou no direito constitucional da Liberdade de Imprensa, como fica claro na decisão do procurador da República Daniel Prazeres, encarregado de analisar a Notícia Crime. Sua decisão pelo arquivamento, como de praxe, foi revista pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Ali ela foi totalmente confirmada, na relatoria do procurador regional da República Rogério Nascimento. Prazeres, ao arquivar o pedido, explicou:
“(…) embora seja particularmente impróprio e até mesmo grosseiro vincular a suástica a uma pessoa mundialmente conhecida e que pertence à comunidade judaica, não se pode inferir da charge em questão, como metalinguagem pictórica, afronta à comunidade judaica, mas, sim e tão somente, afronta às figuras de dois chefes de Governo (…), apesar dos inúmeros significantes aos quais a suástica remete, direta e indiretamente, pode-se afirmar que a figura publicada não transcende às pessoas de N(…) e de B(…) e critica um período pontualíssimo da história – posse presidencial no Brasil e possível mudança da embaixada brasileira para Jerusalém (…) Entretanto, ainda que se analise a charge como ofensa, a conduta deverá ser submetida a um processo de ponderação de interesses. O STF, a propósito de ofensas e críticas a pessoas públicas, pondera o direito de liberdade de expressão e o direito à imagem e privacidade, geralmente prevalecendo o primeiro, mesmo em caso de críticas de mau gosto como a aqui tratada” (STF – ADIn 4.815 /Distrito Federal – Plenário – j. 10.06.2015 – v.u. – Rel. Cármen Lúcia – DJe 01.02.2016). Falta de justa causa para a persecução penal. Homologação do arquivamento“.
Todos estes fatos anteriores indicam que essa nova tentativa de intimidação de Aroeira, com ele Noblat e, de uma maneira mais abrangente, todos os jornalistas, será em vão.
Por decisão da relatora, ministra Cármen Lúcia, a apreciação da ADPF 697 impetrada pela Rede de Sustentabilidade será feita em plenário. Ela apegou-se ao artigo 10 da Lei nº 9.868. Por ele, a medida cautelar – isto é, a liminar – nas ações diretas como a ADPF 697, deverá ser decidida pela maioria absoluta dos membros do Tribunal. Ou seja, terá que ser debatida em plenário.
É possível até que o Supremo entenda, como diz a AGU, que o remédio escolhido – ADPF – foi errado. Mas, mesmo que em outro momento, os ministros dificilmente concordarão em punir o chargista. Caso o inquérito prossiga e haja alguma ação que retorne ao STF. Prevalecerá, como antes, o preceito maior da Liberdade de Expressão e, com ele, o da Liberdade de Imprensa. Falta o atual o governo aprender a lição e a lidar com a crítica.