Anderson Torres pode ter prevaricado ao não informar sobre decreto golpista

Atualizado em 14 de janeiro de 2023 às 9:37
PF escancara descontentamento com o governo Bolsonaro
Anderson Torres e Jair Bolsonaro
Foto: Pablo Jacob/ O Globo

Por Tiago Angelo e Sérgio Rodas

O ex-ministro da Justiça Anderson Torres pode ter prevaricado ao não informar sobre a existência de uma minuta de decreto de estado de defesa para alterar o resultado das eleições presidenciais de 2022, de acordo com especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Em seu perfil no Twitter, Torres disse que a minuta do decreto estava em uma pilha de documentos que seria triturada. Também afirmou que ministros da Justiça recebem diversas propostas que não serão necessariamente colocadas em prática.

Ele não informou, no entanto, quem foi o autor da proposta, nem se o então presidente Jair Bolsonaro (PL) tomou conhecimento do conteúdo do texto.

A proposta de decreto instauraria estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral e buscaria anular a eleição vencida por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O texto foi encontrado na casa de Torres durante uma operação de busca e apreensão da PF.

O documento dizia ter como objetivo “garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022, no que pertine à sua conformidade e legalidade, as quais, uma vez descumpridas ou não observadas, representam grave ameaça à ordem pública e a paz social”. O prazo da medida excepcional seria de 30 dias, prorrogáveis uma vez por igual período.

Especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que a mera existência do documento na casa de Torres pode configurar a ocorrência de ao menos um crime: o de prevaricação. Isso porque o ex-ministro da Justiça deixou de alertar as autoridades competentes sobre a proposta.

“O simples fato de ele (Torres) ter aquela minuta em sua residência poderia configurar o crime de prevaricação. Porque, se ele recebeu essa minuta, ele deveria, imediatamente, ter tomado providências para que não houvesse nenhum golpe e para que a pessoa que encaminhou o documento para ele fosse responsabilizada”, afirma Caio Morau, advogado e professor da Universidade Católica de Brasília.

Se ficar comprovado que o ex-ministro atuou em favor do decreto, ele poderia responder por tentar, com o emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, diz o professor.

Como o estado de defesa nunca foi decretado no Brasil desde a Constituição de 1988, não há muita jurisprudência a respeito do assunto. O artigo 136 da Carta afirma que o presidente da República pode decretar o estado de defesa “em locais restritos e determinados”. Ou seja, há delimitação geográfica, ao contrário do estado de sítio, que pode abranger todo o território brasileiro.

Por outro lado, não há uma definição exata sobre o que significam os “locais restritos e determinados”, nem se a medida pode abranger só as dependências de um tribunal, como propõe o decreto encontrado na casa de Anderson Torres.

De acordo com Morau, a interpretação mais comum que se dá ao dispositivo é a de que o estado de defesa pode abarcar determinados municípios, estados ou regiões, mas não tribunais.

“Não há, de modo comum, uma interpretação mais elástica que pudesse abranger um tribunal. Mas, pelo fato de a redação não determinar o que seriam os locais restritos e determinados, poderia eventualmente ser aceita essa interpretação de o estado de defesa ser decretado em um tribunal, apesar de ser algo muito pouco ortodoxo. Conhecendo as circunstâncias em que esse documento foi minutado, podemos ver que há um claro objetivo golpista e que esse decreto contra um tribunal seria absolutamente inconstitucional.”

A mesma interpretação é dada por ele quanto à possibilidade de ser decretado estado de defesa contra o resultado das eleições. “O objetivo do estado de defesa é restabelecer a ordem pública ou a paz social. É evidente que o resultado de uma eleição conduzida de forma regular não permitiria jamais a decretação de um estado de defesa.”

Estado de defesa

A constitucionalista Vera Chemim afirma que o estado de defesa existe para preservar o Estado democrático de Direito, e não para atacá-lo. Assim, o procedimento não poderia ser utilizado contra um tribunal ou o resultado das eleições, mas só para frear situações de grave crise decorrente de instabilidade institucional ou calamidades naturais de grandes proporções.

“Ao se decretar um estado de exceção, pretende-se proteger o Estado e as instituições democráticas, e não atacar uma instituição que compõe a estrutura de um dos poderes públicos, que é o Poder Judiciário, razão pela qual a suposta minuta aqui examinada seria totalmente inconstitucional.”

Vera não considera, no entanto, que a mera existência da minuta configure crime. De acordo com ela, mesmo que o decreto viesse a ser publicado, dependeria do aval do Congresso.

“Mesmo que se interpretasse a existência daquela minuta como uma ‘tentativa de golpe de Estado’, prevista no artigo 359-M do Código Penal, seria necessária a presença de violência ou grave ameaça, elementos nucleares do tipo penal que não se encontram nessa suposta tentativa de impor um decreto visando a estabelecer um Estado de Defesa.”

“Mesmo que se considerasse a possibilidade de enquadramento em ato de improbidade, no caso de Anderson Torres, ou de crime de responsabilidade, no caso de Bolsonaro, esses crimes não teriam sido consumados”, prossegue.

O jurista Lenio Streck discorda. Segundo ele, Torres confessou ter prevaricado ao afirmar no Twitter que conhecia o documento e pretendia destruí-lo, em vez de buscar a responsabilização de quem produziu a minuta. Ainda de acordo com Streck, há indícios de que houve tentativa de golpe.

“Torres confessa prevaricação e destruição de provas ao dizer que conhecia o documento e que queria destruí-lo. A minuta trata de um golpe de estado que estava pronto para ser aplicado. Tem até data: depois do dia 12 de dezembro. Tem pelo de gato, rabo de gato, bigode de gato. Se não é um gato, é uma gata.”

Para ele, não é possível decretar estado de defesa contra um tribunal ou o resultado de eleições, o que indica “a baixa formação jurídica dos golpistas”.

“O assessor deve ter feito faculdade de Direito por correspondência e com livros de Direito Constitucional mastigados e desenhados. Sempre avisei que nem para o mal esse tipo de ensino serve. Fazer uma comissão no âmbito do decreto de estado de defesa com participação de OAB, MP e Judiciário vai levar o Brasil a ganhar o ‘prêmio IgNobel'”, diz.

Originalmente publicado em CONJUR

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