Angolanos residentes no Brasil denunciam xenofobia causada por crise envolvendo a Igreja Universal em seu país

Atualizado em 9 de setembro de 2020 às 10:28
Templo de Salomão da Igreja Universal. Foto: Reprodução/DCM

PUBLICADO NA AGÊNCIA PÚBLICA

POR TATIANA MERLINO

É manhã de um domingo do mês de julho e, em sua casa num bairro da Zona Leste de São Paulo, Eduardo*, angolano de 49 anos, se arruma para sair para um passeio. Liga o som em volume baixo. Um vizinho grita: “Macaco, baixa essa porra de música de macumbeiro. Eu tô doido pra fazer o mesmo que vocês estão fazendo com nossos irmãos da Universal no seu país”. Eduardo fica com medo. Seus filhos perguntam: “O que está acontecendo, pai?” Ele acalma as crianças: “Não é nada”. O vizinho insiste: “Nada é o caralho, seus macacos”. Os moradores da rua se aproximam e saem em defesa de Eduardo, argumentam que ele é um bom vizinho, que nunca arrumou briga com ninguém. O angolano mora no Brasil há 30 anos.

Paulo* tem 34 anos e trabalha vendendo roupas na Feira da Madrugada, no Brás, região central de São Paulo e há seis mora no Brasil, desde que saiu de seu país, Angola. Ele divide o espaço de trabalho com outro imigrante, um rapaz boliviano. Seu colega vinha sendo alvo de maus tratos por parte de dois senhores, que queriam ocupar seu espaço dentro da feira. Num dia no mês de julho, a provocação acaba em discussão e Paulo sai em defesa do colega boliviano. Por pouco, os dois não são agredidos fisicamente.

Horas depois, indo buscar uma mercadoria num armazém, Paulo vê um carro se aproximar lentamente. Um homem coloca a cabeça para fora da janela e começa a xingá-lo. Paulo tenta ignorar, mas as ofensas continuam. Ele reconhece a voz e olha para o carro. Lá estão os dois homens que provocavam o boliviano. “D’angola, seu macaco, aqui quem manda é nois”, diz um. E o outro: “O meu irmão que é da Universal disse que vocês estão maltratando os brasileiros lá em Angola”. E joga uma garrafa com urina na direção de Paulo.

Casos de xenofobia contra angolanos residentes no Brasil, como os de Paulo e Eduardo, vêm ocorrendo após o início da crise envolvendo a Igreja Universal do Reino de Deus em Angola. No final de junho, um grupo de pastores e bispos da Universal anunciou ter assumido o controle de templos na capital do país, Luanda, e em outras províncias. Informaram, também, o rompimento com a gestão brasileira. O racha envolve inúmeras críticas e denúncias à direção da igreja no Brasil, que tem Edir Macedo como seu líder máximo. Os religiosos acusam a direção da IURD de cometer crimes e abusos, como mostra reportagem da Agência Pública.

De acordo com a Universal, após o rompimento, brasileiros estariam sofrendo ataques de xenofobia em Angola. Em um vídeo, o líder da IURD Edir Macedo afirmou que os angolanos que romperam com a igreja estão amaldiçoados por serem “rebeldes” interessados em dinheiro e em si mesmos. “Sempre houve rebeldes em Angola, gente que não está interessada em almas, mas está interessada nos seus bolsos, interessada em si mesma. Então eles carregam a imagem do terreno, a imagem da rebeldia, estes já estão amaldiçoados, […] e eu diria àqueles que são de Deus, fujam desse pessoal rebelde, não se aliem com ele porque a boca do inferno vai se abrir e eles todos vão descer com a sua família, com seus filhos, todos serão amaldiçoados, eles vão deixar uma maldição para as suas gerações… se deixarem gerações”, ameaçou, como mostra esse vídeo.

Os casos de agressão e xenofobia contra angolanos no Brasil preocupam a comunidade que vive no país.  “Quando tudo isso começou, fiquei com receio pela forma como a história estava sendo noticiada. Achei muito errado como o líder da igreja tentou relacionar a situação com uma questão patriótica. Achei de uma tamanha maldade do Edir Macedo”, afirma Carlos Francisco João, presidente da Associação dos Angolanos do Estado de São Paulo.

Para ele “é importante explicar que nós [angolanos que vivem no Brasil] não temos nada a ver com isso, essa não é uma questão nossa. E também não é uma questão dos brasileiros que moram em Angola, eles são muito bem recebidos por lá. Essa é uma coisa do angolano da Universal com o brasileiro da Universal”, garante.

Porém, ele afirma que, por conta do discurso do líder da igreja, alguns conterrâneos sofreram e “estão sendo alvo de agressões psicológicas e xenofobia”. Carlos, que trabalha como psicólogo hospitalar, conta que recebeu algumas denúncias de casos de agressões e receia que surjam mais outras enquanto a situação não estiver totalmente resolvida.

O medo de sofrer violência tem feito com que alguns angolanos que moram em bairros onde também vivem fiéis da IURD relutem em revelar sua nacionalidade. E entre os que sofreram agressões, alguns hesitam em dar entrevistas, mesmo sob sigilo de identidade. Os dois personagens que aparecem no início da matéria, por exemplo, pediram para ter seus nomes modificados. Um terceiro angolano, que também deu entrevista sob a condição de sigilo, relata que têm conhecidos que estão sofrendo com agressões verbais e que estão sendo seguidos na rua com “pedidos de explicação” por parte de brasileiros, que cobram satisfações sobre a situação envolvendo a Universal.

Residente no Brasil há oito anos, a jornalista e produtora cultural angolana Dominga Juliana, de 31 anos, foi intimidada por um motorista de aplicativo durante uma viagem em julho. “Ah, você é de Angola, onde as pessoas estão maltratando os brasileiros?”, foi o que ela ouviu quando perguntada qual era a sua nacionalidade.

A hostilidade inicial passou quando ela explicou  ao motorista que a questão entre os dois países era apenas relacionada à Igreja Universal. Embora o desfecho tenha sido tranquilo, ela segue preocupada. “Isso nos dá medo. Quantas pessoas estão a ver essas notícias? Com toda essa propaganda de ódio que Edir Macedo tem feito a torto e a direito, o que garante que na próxima situação a pessoa vai entender e pelo menos conversar…?”, questiona.

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Ela diz que no Brasil, basta ser preto para se correr riscos. “Agora, preto, africano e, neste momento, angolano, onde o Edir Macedo diz que brasileiros estão a sofrer xenofobia, ah, aí o risco é maior ainda”.

A comunidade angolana ainda sente a recente morte de um conterrâneo por xenofobia. Em maio deste ano, o angolano João Manuel, de 47 anos, que trabalhava como frentista, foi assassinado com facadas na Zona Leste de São Paulo. O assassinato teve motivação xenofóbica e aconteceu depois de uma discussão sobre pagamento do auxílio-emergencial para imigrantes.

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“Sabemos que a sociedade brasileira é racista, já sofremos muito pelos crimes de racismo que encontramos neste território. Não queremos mais que Angola receba seus filhos num caixão. A morte do João Manuel é muito recente e continua nos abalando”, afirma Ossana Yango, integrante de um coletivo que reúne e acolhe mulheres de oito nacionalidades africanas. Segundo ela, a comunidade está se organizando para denunciar os casos junto a organizações e comissões de defesa dos direitos humanos.

Ela também acredita que os casos recentes de xenofobia ocorreram por conta do “discurso de ódio da liderança da Universal, Edir Macedo. Ele amaldiçoou os angolanos e isso estimula a xenofobia. Precisamos fazer algo para prevenir, trazendo outra narrativa sobre o que está acontecendo”, afirma.

De acordo com o Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), que reúne os registros da Polícia Federal brasileira, há 17.294 angolanos residentes e registrados no Brasil. “Temos o imigrante, o estudante, o que está de passagem, o que vem fazer comércio”, afirma Carlos Francisco João.

No Rio de Janeiro, a crise da IURD também levou a casos de hostilidade contra os angolanos, de acordo com Garcia Neto Zacarias, conhecido como Titi, que preside a União dos Angolanos e Amigos de Angola no Estado do Rio de Janeiro (UNAERJ) e atua como maestro de um coral africano na cidade. “O Edir Macedo tentou amaldiçoar nosso povo, mas ele não tem autoridade espiritual para fazer isso. Só quem pode fazer isso é Deus todo poderoso”, afirma. De acordo com eles, os angolanos que vivem no Rio ouviram coisas como: “voltem para o seu país, vocês foram bem recebidos aqui e agora estão agredindo brasileiros no vosso país, vocês são muito ingratos”.

Procurada para se manifestar sobre os casos de xenofobia, a IURD respondeu por meio de nota em sua página na internet. A resposta foi postada antes da publicação da matéria da Pública, desrespeitando as boas práticas entre jornalistas e fontes. Em nota, disse: “A Igreja Universal do Reino de Deus desconhece e repudia supostos ataques de xenofobia (sentimento de ódio sobre  estrangeiros) contra angolanos no Brasil. Há pastores nascidos em Angola exercendo atividade missionária na Universal em nosso país, que podem atestar que foram bem recebidos e que são respeitados por todos. [….] Assim, a especulação de que a Universal estaria, de alguma maneira, estimulando a xenofobia contra angolanos no Brasil, é uma mentira e uma grave ofensa a todo o trabalho humanitário desenvolvido em favor dos estrangeiros que passam por dificuldades, em nosso país e em outras nações. Há décadas, os bispos, pastores, fiéis e simpatizantes da Igreja Universal do Reino de Deus sofrem com a intolerância religiosa de segmentos da sociedade e com a discriminação de alguns governantes e da mídia contra os cristãos. Exatamente por esta razão, por ser a Universal a maior vítima de preconceito, este jamais virá da Universal”.