Os trechos usados nesta Conversa com Escritores Mortos pertencem ao livro “Presente do Mar”, da escritora e aviadora americana Anne Morrow Lindbergh (1906 – 2001).
Mrs. Lindbergh, quais são as regras de conduta e os estilos de vida que mais contribuem para uma harmonia interna e externa? Que caminhos devemos trilhar?
O primeiro passo consiste em simplificar a vida, cortando algumas de suas complicações. Mas como? Não é possível alcançar um isolamento total. Não podemos abandonar todas as nossas responsabilidades. A solução não seria, com certeza, nem a renúncia total, nem uma aceitação total do mundo. É necessário encontrar um equilíbrio em algum lugar, ou um ritmo que se alterne entre estes dois polos; a oscilação do pêndulo entre afastamento e retorno, solitude e comunhão.
Quais as consequências positivas da simplicidade?
Falemos, por exemplo, do desapego. Primeiro, as roupas. Nós quase sempre precisamos de menos roupas do que possuímos. Não precisamos de um armário cheio, mas somente de uma mala pequena. E isso é a coisa mais reconfortante. Nós temos menos bainha para subir e baixar, menos roupas para consertar, menos preocupação com o que vestiremos…
A busca pela simplicidade é mais difícil para as mulheres casadas e/ou para as mães?
As santas raramente foram mulheres casadas, não é mesmo?
O que isso significa?
Não que isso se relacione com filhos ou castidade. Esse fato está ligado principalmente à multiplicidade da vida da mulher casada. Parir, alimentar e instruir os filhos; cuidar dos relacionamentos humanos com suas incontáveis influências. A atividade comum de uma mulher corre geralmente em sentido contrário à vida criativa e contemplativa.
E quanto aos relacionamentos humanos? Como devemos encará-los? Qual é a melhor maneira de nos relacionarmos com os outros tendo em vista, entre outras coisas, a manutenção de nossa harmonia interna?
Creio que há um equívoco na maneira como encaramos os relacionamentos humanos. O que queremos é ser amados com exclusividade. “Não se assente sob a macieira com outro alguém, apenas comigo”, diz a velha canção popular. Auden expressou tal sentimento em um poema:
Pois o erro gerado do corpo
De todo homem e toda mulher
É ansiar pelo que não podem ter,
O amor único, pessoal.
Estamos errados ao desejarmos a exclusividade de um amor?
Conversando com um filósofo hindu sobre esse verso, tive uma resposta iluminada. Não estamos errados porque desejamos um amor exclusivo, pois a essência do amor consiste na reciprocidade – e não há espaço para um terceiro na reciprocidade da relação a dois.
Qual é o erro, então?
O erro está em desejarmos a continuidade – em desejarmos eternizar a exclusividade do amor.
E qual a finalidade do relacionamento pessoal?
Gosto de citar uma frase de MacMurray a respeito disso. “O relacionamento pessoal não tem outro motivo além do próprio vínculo”, diz ele. “Não é baseado em interesses, e não serve a finalidades parciais ou limitadas. Seu valor reside inteiramente em si mesmo, e é por isso que transcende a todos os outros valores – tudo isso por ser a relação de pessoas enquanto pessoas”.
Hmmm…
Este relacionamento de pessoas enquanto pessoas foi aludido profeticamente pelo poeta alemão Rilke. Ele previu uma mudança na relação entre homens e mulheres, esperando, para o futuro, que fossem quebrados os padrões tradicionais de dominação, competição, possessividade. Rilke descreveu um estágio avançado, no qual haveria espaço e liberdade para o crescimento. “Uma relação entre duas pessoas”, conclui, “onde prevaleça um amor humano que consiste em um par de solitudes que se protegem, se tocam e acolhem uma à outra”.
Como podemos atingir esse estágio em uma relação?
Esse amor mais humano, essa concepção de duas solitudes, não acontece facilmente. Me parece que essa fase da vida não viria como um presente ou um acidente fortuito – e sim como parte de um processo evolutivo, uma conquista que só pode ser alcançada através do desenvolvimento de cada parceiro.
E qual é o papel da mulher nisso tudo?
A mulher precisa amadurecer por si mesma. E a essência desse amadurecer consiste em aprender a viver só. Ela precisa aprender a não depender do outro e a não competir com os demais para provar sua força. Como prelúdio de qualquer relacionamento entre duas solitudes, precisa seguir o conselho do poeta e se tornar um mundo em si mesma para o seu próprio bem e para o bem daqueles que com ela convivem.
A senhora poderia resumir as suas concepções relativas ao relacionamento entre os seres humanos?
Creio que, quando você acha uma pessoa, você não a ama o tempo todo, do mesmo modo, de forma ininterrupta. Isso é impossível. Não é verdade se alguém disser que ama dessa maneira. E, no entanto, é exatamente isso que a maioria das pessoas exige. Temos pouca confiança no fluxo e refluxo da vida, do amor e dos relacionamentos, e por isso tentamos nos agarrar à maré cheia e morremos de medo da vazante. Tememos que a água não mais volte. Insistimos em permanência, duração, continuidade, quando a única continuidade possível na vida, e também no amor, está na fluidez.
Nesse caso, no que está a segurança de um relacionamento?
A segurança não está em se apoderar ou possuir, em exigir, criar expectativas e em nutrir esperanças. A segurança em um relacionamento não está em contemplar, com nostalgia, o passado, e tampouco em antecipar o futuro. A única segurança em um relacionamento é vivê-lo no presente e aceitá-lo como está neste momento.
Para encerrar, Mrs. Lindbergh: como podemos viver com o máximo possível de harmonia e de contentamento?
Devemos conquistar o máximo possível de simplicidade e o equilíbrio entre a vida física, intelectual e espiritual. É preciso que estabeleçamos o tempo para solidão e o tempo para compartilhar, e que nos aproximemos da natureza a fim de fortalecer a compreensão e a fé na intermitência da vida – vida do espírito, da criatividade e dos relacionamentos.