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Por Marcelo Auler
Em mais uma derrota das bajuladoras tentativas do ministro da Justiça, André Mendonça, de punir críticos do presidente Jair Bolsonaro com a Lei de Segurança Nacional (LSN), o procurador da República João Gabriel Morais de Queiroz pediu ao juízo da 12ª Vara Federal de Brasília o arquivamento, “por manifesta atipicidade de conduta”, do Inquérito que o ministro ordenou que a Polícia Federal abrisse contra o advogado Marcelo Feller. Mendonça, como é público, sonha em substituir Marco Aurelio Mello no Supremo Tribunal Federal.
No pedido de arquivamento, que ainda depende da decisão do magistrado, como se estivesse mandando um recado ao ministro, o procurador Queiroz lembrou que a Lei de Abuso de Autoridade, de 2019, tipifica como crime a conduta de “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”. Essa foi a quarta tentativa de Mendonça de instaurar inquéritos, respaldados na LSN, contra críticos ao desgoverno de Bolsonaro.
A lembrança da existência da Lei de Abuso de Autoridade não foi, na manifestação do procurador de dez laudas, a única lição ao ministro da Justiça que a cada dia demonstra nada conhecer sobre leis, jurisprudências e, principalmente, direito constitucional. Ao analisar as acusações de Mendonça a Feller, o procurador lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já pacificou o direito às críticas a autoridades e agentes públicos.
Recordou, por exemplo, o que foi decidido no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, em abril de 2009, ocasião em que deixou claro que “todo agente público está sob permanente vigília da cidadania. E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um comportamento antijurídico francamente sindicável pelos cidadãos”
Comportamento questionável do presidente
A partir deste entendimento e também lembrando que no “Estado Democrático de Direito a liberdade de expressão é um direito fundamental e, dessa forma, deve ser assegurado o seu exercício ainda que vá de encontro aos interesses dos governantes de ocasião“, o procurador Queiroz fulminou a pretensão do ministro bajulador:
“na hipótese, portanto, não há se falar sequer em tese em ofensa à honra subjetiva do presidente da República, mas tão somente de crítica ao comportamento (aliás, amplamente questionado) deste em relação à pandemia causada pelo novo coronavírus.”
Ao arquivar o inquérito, o procurador – que é, por força constitucional, o chamado “dono” da ação penal – tenta “evitar o constrangimento ilegal do investigado, que se limitou a manifestar sua opinião em debate, com base em fundamentos extraídos de estudo científico e no comportamento questionável do presidente da República”.
Feller, em julho de 2020, ao participar de um debate na TV CNN do Brasil, referiu-se a declarações do ministro do STF Gilmar Mendes. Este, ao criticar a condução, à época, interina do Ministério da Saúde por um militar, o hoje ministro general Eduardo Pazuello, declarou que “o Exército está se associando a esse genocídio”. Foi uma direta referência à responsabilidade do governo federal em relação à pandemia de Covid-19. Na ocasião, o país somava 70 mil mortos. Hoje, seis meses depois, já se contabiliza 214 mil mortes.
Quarta bajulação frustrada
O pedido de inquérito contra o advogado foi a quarta tentativa do ministro bajulador de usar a dantesca lei do período da ditadura militar contra quem manifesta-se de forma crítica ao atual presidente. Com isso busca intimidar jornalistas e críticos ao desgoverno. Outras três tentativas até o momento não prosperaram, como narramos na reportagem Ao bajular, André Mendonça atesta seu despreparo.
Em junho de 2020, ele respaldou-se na mesma lei draconiana contra o cartunista Aroeira, em razão de uma charge em que Bolsonaro pintava uma suástica a partir da Cruz Vermelha, símbolo da saúde. Foi o que informamos em Ao perseguir Aroeira, Mendonça ignora decisões do STF onde quer sentar.
No pedido, incluiu o jornalista Ricardo Noblat por ter republicado a charge nas redes sociais. Foi um tiro no próprio pé pois provocou um espontâneo movimento de chargistas de todo o país que redesenharam o cartum original, cada qual de uma forma, dando ampla divulgação àquilo que o despreparado ministro da Justiça queria punir.
Um mês depois ele recorreu à mesma lei que é um entulho da ditadura militar tendo como alvo o colunista da Folha Hélio Schwartsman. Quis puni-lo por ter dito que torcia pela morte de Bolsonaro, quando este anunciou sua contaminação pela Covid. Esta sua tentativa foi barrada no Superior Tribunal de Justiça.
Mais recentemente o alvo foi o jornalista Ruy Castro, também colunista da Folha, quando ele, em tom irônico, sugeriu que Donald Trump e também Bolsonaro cometessem o suicídio, cimo tentativa de entrarem para a História, tal como ocorreu com Getúlio Vargas. Mais uma vez Noblat foi incluído no pedido de inquérito por ter reproduzido o texto.
Mesmo com o insucesso das suas tentativas anteriores em punir e intimidar jornalistas, Mendonça insistiu na LSN. Agora o alvo é um advogado por um debate realizado em julho de 2020. Além de demonstrar uma tendência antidemocrática ao tentar punir críticos a Bolsonaro com uma lei que não se aplica, a iniciativa é burra. A cada pedido de inquérito, Mendonça acaba dando visibilidade ao que tenta combater. O debate de julho de 2020 já havia caído no esquecimento. Mas o ministro persiste no erro, o que, segundo o ditado popular, passa a ser sinal de burrice.
Já que sonha ser ministro do STF, Mendonça deveria aprender de vez o que o procurador Queiroz explicou didaticamente em sua manifestação. “A aplicação da lei de segurança nacional, como instrumento de defesa do Estado, tem de estar reservada para aqueles casos extremos em que há realmente o propósito de atentar contra a segurança do Estado e uma certa potencialidade de verdadeiramente atingi-la, o que não se observa no caso“.
Não se observa no caso de Feller e em nenhum dos outros nos quais Mendonça recorreu a ela. Como concluiu o procurador, especificamente ao tratar o inquérito instaurado contra o advogado:
“a conduta aqui noticiada nem de longe se amolda ao crime de calúnia previsto no art. 26 da Lei de Segurança Nacional, tendo em vista a evidente ausência de lesão real ou potencial à integridade territorial e à soberania nacional; ao regime representativo e democrático, à Federação e ao Estado de Direito; ou ao Chefe dos Poderes da União, bens jurídicos tutelados pela Lei em apreço (art. 1º, da Lei n° 7.170/1983)“.
No entendimento de Queiroz também não se pode recorrer ao Código Penal para enquadrar o crítico de Bolsonaro no chamado crime contra a honra. Ele lembra que a “configuração dos crimes contra a honra reclama a prática de conduta animada por um fim especial de agir, é dizer, a intenção de ofender a honra alheia“. Por fim, ele acrescentou: “o investigado limitou-se a manifestar sua opinião em um debate motivado por críticas tecidas pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes à condução de políticas públicas pelo Governo Federal voltadas ao enfrentamento da pandemia.”
Ao falar do clima de polarização política que tem prevalecido na sociedade brasileira, o procurador acaba responsabilizando o próprio presidente que o ministro, inutilmente, tenta defender. Novamente é algo que serve não apenas no caso de Feller, mas para todos os demais provocados por Mendonça:
“É necessário ter-se em mente, ainda, o contexto fático e político no qual foram veiculadas as afirmações do investigado, marcados por uma acentuada polarização política, em grande parte incentivada pelo próprio presidente da República, e em meio a uma pandemia que já matou mais de 210.000 pessoas apenas no Brasil, em menos de um ano“.
Em seguida, reafirma o entendimento do Supremo Tribunal. Desde 1999, no sentido de que o agente público, está sempre sujeito ao crivo do julgamento da sociedade:
“Ao dedicar-se à militância política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana costuma chamar a zona di iluminabilit, resignando-se a uma maior exposição de sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em particular, dos seus adversários” (HC 78.426-6-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1 ª Turma, DJ de 7.5.1999).
A partir deste novo entendimento de que não se pode usar a Lei de Segurança Nacional para intimidar críticos ao desgoverno Bolsonaro, sejam jornalistas ou não, já se deveria articular para que Mendonça fosse acionado judicialmente, com base na citada Lei de Abuso de Autoridade, de forma a evitar que ele volte a cair na tentação de bajular o presidente, através do pedido de abertura de inquéritos incabíveis. Talvez, acionado judicialmente, ele aprenda aquilo que as três tentativas frustradas anteriores não lhe serviram como lição.
Manifestação do MPF pelo arquivamento do Inquérito contra Feller