Não tem um dia que eu não lembre da expressão do meu pai no seu último sopro de vida. Aquele homem tão potente, tão forte, tão enorme, sucumbiu diante dos meus olhos e eu senti um misto de tristeza e alívio. Tristeza pois sinto falta dele até naquelas condições, mal capaz de se levantar. Mas aliviado porque a vida já se arrastava de uma forma que não fazia justiça à sua grandeza, e embora eu gostaria de tê-lo por perto de qualquer jeito, tenho certeza de que ele não.
Meu pai era um defensor ferrenho do direito à eutanásia. Acho que a primeira vez que o assunto foi seriamente discutido no Brasil, foi através de uma capa da revista Superinteressante, naquele momento sob seu comando. Valorizava a “vida que vale a pena” em oposição à “vida possível” que se apresenta em algumas ocasiões.
Mas ele não fez essa opção. Não sei por quê, mas a mim parece que foi para passar o máximo de tempo conosco. Talvez principalmente com o Fernando, meu irmão, seu filho temporão, que tinha só 2 anos quando da sua morte. Uma semana para o Fefê era (e ainda é) um tempo que faz bastante diferença. Falo em uma semana pois a partir do momento em que a coisa ficou realmente feia, foi só uma semana até que o corpo naturalmente deixasse de funcionar.
Meu pai amava a família e os filhos loucamente. Era um defensor agressivo. Problemas na escola? Meu pai teve que aprender a se segurar para que eu mesmo desenvolvesse a capacidade de resolvê-los. Qualquer coisa que acontecesse, lá ia ele cobrar professores e coordenadores.
Mas ninguém, arrisco-me dizer, foi tão loucamente amado quanto a Camila, minha irmã. Era sua “diva rafaelita”, a luz dos seus olhos. Eu realmente acredito que havia um amor especial entre ele e a Cacá. Tinham um elo forte no gosto pela leitura. Era a companhia que lhe trazia toda a paz que muitas vezes nós, meninos bagunceiros e agitados (como ele), não éramos capazes. Cacá é calma, quieta, tranquila. (Antes de algum mal entendido: não é machismo; essa é, menina ou não, a natureza da Cacá).
Meu pai, no entanto, jamais admitiu amar um filho mais que outro. Fernando, Pedro, meu irmão logo abaixo de mim, ou eu, o “primogênito”, como ele gostava de dizer, todos recebemos nossa devida atenção e amor incondicional.
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A maior característica do meu pai foi sua força mental descomunal. Ele engolia quem quer que fosse, de João Roberto Marinho a Roberto Civita. Era um grande argumentador, um cara inteligente e sagaz. Isso não se aplicava só à vida profissional, em que teve grandes êxitos, mas na pessoal também.
Aprender a negociar, argumentar, discutir com meu pai me faz capaz de fazê-lo com, literalmente, qualquer pessoa do mundo. Argumentar com ele era como lutar boxe com Mike Tyson. Quem treinou com Tyson pode lutar com qualquer um.
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Meu pai era um cara engraçado à sua maneira. Não era nenhum piadista típico, mas tinha um humor particular. Era o oposto do cara que precisa que os outros riam de suas piadas; meu pai se satisfazia com sua própria diversão. Um exemplo que me traz memórias carinhosas é o de uma padaria em que gostava de frequentar. Corinthiano fanático, nessa padaria, que fica próxima ao estádio do Morumbi, ele se passava por sãopaulino aos garçons e habitués, que eram sãopaulinos. Certa vez notei por quê: para detonar o São Paulo e elogiar o Corinthians. “Esse jogo não vai dar pra a gente, o Corinthians tá muito forte. Esse Rogério Ceni, tá na hora de se aposentar, como ta jogando mal. A gente precisa de um goleiro como o Cassio”, ou coisa do tipo. E se divertia sozinho.
Era um sarrista. Não há muito tempo, numa tarde de sábado ou domingo de casa relativamente cheia, meu pai resolveu dar nota aos comentários de cada um. Então, por exemplo, se alguém falasse “mas como ta quente”, ele simplesmente respondia “Pedro, nota 6 para a sua observação”, ou qualquer coisa assim. Fez isso por algum tempo. Diante disso, a Dani, minha namorada educadora, disse que o mundo seria melhor se as coisas não fossem classificadas assim, com notas. A resposta do meu pai: “Dani… nota 2 para o seu comentário”.
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Meu pai não foi sempre fácil para mim. Acho que não foi fácil para ninguém – muito menos para ele. Nós tivemos momentos duríssimos de brigas aos berros. E tivemos momentos de melhores amigos, confidentes, companheiros.
Éramos parecidos. Melhor, somos. Nosso temperamento é semelhante. Natural que haja cabeçadas. Foram mais do que eu gostaria de admitir, mas não foram muito relevantes. Efêmeras, eu diria. Passaram rápido. Não ficou mágoa intransponível.
Embora ele tenha tido uma porcentagem de acertos fantástica em todos os sentidos, não gosto, por exemplo, do desgaste a que se sujeitou na fase polarizada do Brasil. Preferia que não tivesse passado por isso. Esta é uma diferença entre nós: eu procuro ser, acho, mais moderado; ele ia com tudo, dois pés no peito. Mas essa é uma reclamação minha como filho – acho que seria melhor para ele. O senso de dever que ele tinha era outro, e entendo.
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Tenho uma hipotese quanto à relação de amor e ódio entre meu pai e Roberto Civita: foi fruto de uma relação paternal mal resolvida.
A grande tragédia pessoal da vida do meu pai foi a perda do seu pai, meu avô Emir. Ele disse, e não foram poucas vezes, que foi tomado por um sentimento de orfandade que durou quase a vida inteira.
O buraco causado pela falta dessa figura paterna pode ter causado alguma confusão na relação com Civita. Meu pai contava que Roberto em certa ocasião lhe dissera que o via como filho. Não sei em que contexto isso foi dito, nem sei se foi da boca para fora, uma piada, um agrado. Sei é que foi marcante para o meu pai, que passara décadas sofrendo a morte do meu avô.
Me parece que ele nunca fora tratado como o filho que talvez esperasse ser. Ou que se tornara mesmo a ovelha negra, saindo da Abril e indo à Globo.
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Não sei exatamente a partir de que ponto isso passou a ocorrer, mas eu nunca vi meu pai se referir ao Roberto Civita como Dr. Roberto, como, até onde eu sei, ele gostava de ser chamado – e, obvio, como lhe chamavam na Abril. Nem tratou de modo especial João Roberto Marinho.
Não estou dizendo que meu pai fosse íntimo deles. Conviviam profissionalmente. De Roberto Civita chegou a ser mais próximo, mas até onde eu sei, meu pai nunca pisou na casa de Marinho.
Esse tratamento sem olhar para cima tinha um valor simbólico, que é provavelmente o maior valor que herdei dele: ninguém é maior pelo tamanho da conta bancária. Riqueza não é diretamente proporcional a caráter. É legal agradar, é legal enaltecer, chamar de mestre, doutor, guru. Mas na dúvida, faça isso com o chapeiro da padaria. Faça isso com o lixeiro, com o carteiro, com o guardinha da rua.
Tenho exemplos do meu pai para cada passo do meu dia. Penso neles sempre que tenho qualquer dúvida do que fazer. A generosidade, o amor incondicional, o afinco no trabalho, a liderança, o senso de grandiosidade. Mas este é o exemplo de que mais tenho orgulho. É este que quero repetir e ensinar para quem quer que a vida me permita até que eu possa estar, mais uma vez, nos braços do meu pai.
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Tenho sonhado diariamente com meu pai. Hoje, sonhei mais uma vez. Nesses sonhos, geralmente ele está relativamente frágil e nós, em sua volta, tentamos curá-lo, ajudá-lo, salvá-lo.
O paradoxo é que, se meu Vô Cesar foi minha fonte de equilíbrio e minha Vó Thereza, de generosidade, meu pai foi minha fonte de potência. Nesses sonhos, no entando, estamos todos lá, tentando dar de volta a ele a potência ele que ele nos ensinou a ter e, com sorte, reverter o resultado desta tragédia divina que a gente chama de vida.
Meu pai morreu. (Como é difícil escrever isso). E cá estou eu, lutando em sonho, um ano depois, para segurá-lo aqui conosco.
Mas nos meus sonhos ele nunca morre. Quer dizer, às vezes todo mundo acha que morreu, mas ele volta e fala mais alguma coisa. Daqui a pouco está conversando, dando uma lição filosófica, citando Epicuro.
Eu não sei porquê escrevi isso. Acho que queria que fosse verdade. Mas não é. E só me resta juntar minhas forças e escrever uma ode a este que, para você podia ser o Paulo Nogueira. Para mim, era o meu pai. Meu papaizinho.