Em texto intitulado “Leonardo Boff, o ‘todo’ e o Tatto”, Valter Pomar respondeu o pedido de Boff para que o Partido dos Trabalhadores apoiasse a candidatura de Boulos em São Paulo.
Boff comentou o seguinte:
Valter Pomar, você tem todo o meu respeito por sua vida e por sua luta. No entanto,penso diferentemente de você.Falar do PT e não falar de povo, não é falar do PT.A palavra povo não ocorre nenhuma vez em seu texto.Arrepia-se quando falo do TODO. O todo deve ser pensado em contraposição da PARTE donde vem partido. Quando irá tirar o passaporte não dirá: sou da classe média ou da classe operária etc… Dirá sou do Brasil, dessa totalidade que transcende as classes.Não precisa se arrepiar,basta entender o sentido de Parte e do Todo. A questão toda para mim é que se as coisas correram como estão correndo,ninguém das esquerdas vai para o segundo turno. Imperará a direita (Russomano) o centro-direita(Covas). E assim Bolsonaro não se sente ameaçado pela cidade maior de nosso país. Como fazer frente à pós-democracia e ao Estado sem lei(RR Casara) de Bolsonaro se ninguém das esquerdas vai ao segundo turno?Vejo que Boulos e Erundina (dizem que foi a melhor prefeita da capital, SP)podem, com o apoio do PT ir para o segundo turno.Em POA o PT apoiou a Manuela do PC do B (certo:)entrando com o vice, o Rossi.Tal apoio seguramente vai dar a vitória à Manuela, o que beneficia em muito o PT. Não pedi licença ao Lula,mas uma justificativa a um amigo de 40 anos que tem o direito de saber da minha posição.Ele mesmo disse várias vezes, até na live que fizemos somente ele e eu, que fui um dos poucos intelectuais que nunca o abandonaram, mesmo na pior das crises.
A minha questão não é Lula. Nem sou filiado ao PT, mas a causa que Lula e o PT representam, a causa dos humilhados e ofendidos. Essa é a causa da Teologia da Libertação e certamente também a sua. E mais não digo. Um abraço, Leonardo Boff.
Em resposta, Pomar escreveu, em seu blog:
Prezado Leonardo Boff
Alguém assinando com teu nome escreveu um comentário (ver ao final) no meu blog. Supondo que sejas mesmo tu, escrevi a seguinte resposta:
Também tens o meu respeito. E, sim, pensamos diferente. Por exemplo: não considero que o PT fale em nome de todo o povo. O PT fala em nome de uma parte do povo, defende os interesses de uma parte do povo, quer falar em nome da maioria do povo. Mas não falamos, nem devemos querer falar, em nome de TODO o povo.
Na história política do século 20, quem se arrogou a pretensão de falar em nome de TODO o povo, acabou mais cedo ou mais tarde adotando posturas inaceitáveis. Entre outros motivos, porque quem acredita que fala em nome do TODO, acaba caçando bruxas, internando dissidentes, falando ame-o ou deixe-o.
Cito o exemplo dado por você: “Quando irá tirar o passaporte não dirá: sou da classe média ou da classe operária etc… Dirá sou do Brasil, dessa totalidade que transcende as classes”. Penso totalmente diferente: do meu ponto de vista, a Nação não “transcende” as classes; a Nação (ou a sociedade brasileira) é uma unidade contraditória, composta por classes diferentes, por pessoas que tem gêneros, etnias, culturas diferentes. A palavra TODO me arrepia, entre outros motivos porque desconhece a existências destas contradições, algumas das quais antagônicas (como a contradição que opõe trabalhadores e capitalistas).
Alguém pode dizer: como pode uma discussão eleitoral, resvalar para uma discussão aparentemente filosófica? Pois é: isto só prova que no debate sobre a tática do PT em São Paulo, estão em jogo questões muito profundas.
Do ponto de vista estritamente eleitoral, tua preocupação, que também é a minha, é que precisamos colocar a esquerda no segundo turno das eleições em São Paulo capital. Não sei qual era a tua posição, antes da campanha eleitoral começar, acerca do que deveria ser feito. A minha é mais ou menos pública, mas não consegui convencer o Partido dela. Assim, trabalho com a realidade posta. E estou 100% convencido de que para levar a esquerda ao segundo turno, seria um erro retirar qualquer uma das candidaturas postas.
Você diz que Boulos e Erundina poderiam, “com o apoio do PT ir para o segundo turno”. Eu sempre brinco que poder, tudo pode, ou quase. Mas veja: as mesmas pesquisas em que você se baseia para fazer esta afirmação, nos informam algo um pouco diferente. O que as pesquisas informam? Que a preços de hoje, o segundo turno seria entre Covas e Russomano. E que Covas está mais firme do que Russomano. Portanto, para ter segundo turno, o caminho mais fácil é tirar Russomano. E a questão é: quem arranca votos de Russomano? Segundo leio nas pesquisas, é principalmente Tatto. Portanto, para quem deseja um segundo turno sem Russomano, não faz muito sentido defender a retirada de Tatto.
Ah, claro, você imagina que Tatto & Lula poderiam transferir votos diretamente para Boulos. Como já disse, poder tudo pode, ou quase. Mas na vida real, como é que isto seria feito? A lei não permite fusão dos tempos de TV, nem transferências dos recursos financeiros. Não consigo ver os meios de comunicação de massa trabalhando para ajudar nesta operação. Portanto, tudo dependeria da militância do PT, que segundo este raciocínio, seria capaz de fazer por Boulos aquilo que não conseguiria fazer por Tatto. Com todo o respeito, com base na minha experiência pessoal, eu acho que as coisas não funcionariam assim.
Os exemplos de Porto Alegre (onde o PT apoiou o PCdoB) e de Belém (onde o PT apoiou o PSOL) mostram duas coisas: que o PT não é sectário e que as coisas, mesmo quando são corretas, para dar certo, precisam ser feitas na hora certa e do jeito certo.
Sei que você não é filiado ao PT e respeito (embora não concorde com) os motivos que te fazem votar em Boulos e Erundina. Penso, entretanto, que o respeito precisa ser recíproco. Afinal, todo mundo é livre para tentar conquistar o voto do eleitorado paulistano que tem ou já teve o PT como referência. Mas é deveras curioso que nos peçam que façamos, pela candidatura de outro Partido, aquilo que dizem que não seríamos capazes de fazer por nossa própria candidatura.
Ademais, veja a situação bizarra em que estamos: lutamos para tirar votos da direita, e estamos conseguindo; mas somos o tempo todo desqualificados, espezinhados, vilipendiados, humilhados, por ataques que vem de gente de esquerda. E mesmo assim, temos optado pelo silêncio obsequioso, por não responder, por não gastar munição escassa, demarcando contra um aliado potencial.
O PT existe há 40 anos. Houve uma época em que diziam que nós atrapalhávamos a luta para derrotar a ditadura, porque dividíamos o voto da oposição. Voltamos a ouvir isto em 2018, especialmente da boca de um cidadão que no segundo turno viajou para Paris. Agora estamos ouvindo isto de novo, no caso de São Paulo, inclusive da boca de pessoas que são nossas amigas e companheiras. Sei das boas intenções, mas delas o inferno está cheio. Muito resumidamente: não consigo enxergar como enfraquecer o PT poderia ajudar na luta da classe trabalhadora contra o bolsonarismo e seus cúmplices. Por tudo isso e mais um pouco, sigo com Tatto.
Um abraço, Valter Pomar