Por Leonardo Sakamoto
Mais de 500 pessoas foram mortas, a maioria de crianças e mulheres, após um míssil atingir o hospital Al-Ahly Arab, no centro da cidade de Gaza, nesta terça (17).
A tragédia tem potencial para empurrar a resolução costurada pelo Brasil prevendo um cessar-fogo (ou qualquer eufemismo que se dê a isso) e a criação imediata de corredores de atendimento humanitário. A menos que o Conselho de Segurança das Nações Unidas se prove um chá da tarde com nações que não se importam em serem cúmplices de crimes contra a humanidade.
Os países com direito a veto – Estados Unidos, Reino Unido e França, de um lado, e Rússia e China, de outro – têm posições diferentes quanto à responsabilização do governo de Israel pelo que está acontecendo em Gaza. A questão é que essa disputa tem menos a ver com a dignidade do povo palestino e mais relação com questões geopolíticas e de interesses de aliados.
Os palestinos culpam Israel pelo ataque, que atingiu não apenas feridos, mas também uma massa de refugiados que havia deixado suas casas por acreditar que o local era seguro. Israel tirou o corpo fora, dizendo que a culpa é da Jihad Islâmica, que teria errado um ataque.
O fato é que mais de 500 palestinos foram mortos de uma só vez em meio a um bombardeio israelense que já dura dias, um bloqueio de alimentos, remédios, produtos hospitalares, água, eletricidade e combustível a Gaza e uma ordem do Exército de Israel que produziu uma onda instantânea de refugiados que se aglomeram no Sul do território, não tendo nem onde dormir e cagar.
Se o inferno se parece com algum lugar, neste momento é o Norte de Gaza.
Os feridos, antigos e novos, estão sendo transferidos a outras unidades hospitalares, que torcem para não se tornarem alvos. Israel mandou que elas também fossem evacuadas, mas médicos e enfermeiros com quem conversei se negam a fazer isso porque há pessoas que simplesmente não têm como sair de lá.
A Al Jazeera reporta que, na fronteira Sul de Gaza, há um comboio de mais de 100 caminhões com ajuda humanitária da Turquia, Qatar, Emirados Árabes, entre outros países, aguardando no lado egípcio por um sinal verde de Israel. Mas o aval não foi dado.
Enquanto as redes sociais no Brasil e no mundo defendem que o míssil que atingiu o Al-Ahly Arab é israelense ou não, protestos de apoio ao povo palestino aumentam de intensidade em vários países, principalmente nos de maioria islâmica no Oriente Médio.
Esse é o contexto que aguarda o presidente Joe Biden, que chega a Israel e ao Oriente Médio para apoiar o aliado, mas também tentar costurar uma saída. Pontes para o diálogo foram implodidas com a bomba no hospital, como pode ser visto pelo cancelamento de uma reunião que ele teria com o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas.
Os bombardeiros e o cerco são um retaliação israelense aos ataques terroristas do Hamas, que matou mais de 1,4 mil pessoas. Israel, que tinha direito a se defender, contudo, resolveu responder equiparando-se ao seu adversário, cometendo crimes de guerra contra civis previstos na 4ª Convenção de Genebra. O número de mortos em Gaza já passa dos 3 mil – e vai subir muito mais.
Este é um momento em que ânimos podem ser contidos e mortos enterrados e pranteados, de ambos os lados. Ou a violência escalar para algo que pode ficar fora do controle, gerando um conflito, no mínimo, regional.
Trabalhei seis anos como expert das Nações Unidas ligado ao escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos em Genebra. E apesar de reconhecer a atuação fundamental de organismos como a UNRWA, a agência de ajuda humanitária da ONU para os refugiados da Palestina (que tem visto seus funcionários morrerem, vítimas de bombardeios), temos os membros permanentes do Conselho de Segurança agindo como se fosse aceitável sacrificar milhares de peões para ganhar uma partida.
No próximo dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 75 anos. Não é perfeita, mas é nosso melhor documento enquanto civilização. Foi adotada pela ONU três anos após o mundo ter sentido os horrores de sua pior guerra. É quando vivemos na beira do abismo que somos capazes dos maiores saltos. O problema é que a morte de palestinos pobres não é visto como abismo pela maioria do mundo. Pelo contrário, são apenas danos colaterais.
Publicado originalmente em UOL