Por Leonardo Sakamoto
Sair enrolado com uma bandeira ou com a camisa da CBF não prova que a pessoa ame seu país. Teve “patriota” que, enrolado em nossa flâmula, ficou eternizado em vídeo ao simular que estava defecando no STF no 8 de janeiro. Enquanto isso, o padre Júlio, exemplo de que ser humano que leva conforto àqueles que a sociedade rejeitou, não vai às ruas fantasiado de amarelo.
Não adianta entoar mantras de amor a um lugar e estacionar em cima da ciclovia, por exemplo. Criticar desvios na Petrobras e fazer vista grossa às pequenas corrupções do dia a dia ou ser um empresário e sonegar impostos. Ou manter um imóvel fechado por anos em nome da especulação imobiliária enquanto gente passa frio ao relento. Pedir mais saúde em protestos e ser contra vacina.
Aceitar de forma acrítica os discursos de que “todos somos filhos e filhas do mesmo solo” e que “todos somos livres e iguais” é ignorar que a maioria é tratada como um bando de renegados, sem direito a nada além de gerar riqueza para os outros.
A Operação Resgate 3, tocada por órgãos públicos, acabou de retirar da escravidão 532 pessoas em todo o país, entre elas uma senhora idosa de 90 anos que trabalhava há décadas para a mesma família. Dormia em um sofá.
Ela cantaria que é brasileira com muito orgulho e com muito amor? Pode até ser que sim por ter passado pela mesma propaganda patriótica, mas o país nunca deu a ela razão para isso.
Aliás, a letra do hino nacional brasileiro não é uma das mais bonitas do mundo, ao contrário do que afirmam correntes que circulam na rede. Até porque é impossível mensurar tal coisa. Mas ainda temos tristes índices de iletramento.
Também é mito que a bandeira nacional (cujo verde não vem da representação de “nossas matas”, mas sim da casa imperial brasileira) é considerada uma das mais belas. Mas somos reconhecidos pelas altas taxas de desmatamento.
O povo brasileiro não é, necessariamente, o mais alegre do planeta. Mas é um dos campeões de desigualdade social e de concentração de renda, com um sistema tributário que tira dos pobres para proteger os super-ricos e é defendido pelo sujeito de classe média que acha que é rico, mas parcelou o Renegade em 24 vezes.
A democracia racial, apesar de alardeada como exemplo planetário, não existe e, por isso, não nos define. O que nos explica são séculos de escravismo e sua herança, o racismo estrutural.
O Brasil não é o país que tem a mulher mais bonita do mundo. Até porque rankings assim são ridículos devido à carga de subjetividade. Mas somos um país reconhecidamente machista, que produz feminicídios em série.
Nossa comida não foi eleita a mais gostosa. Mas estamos entre os campeões globais de uso de agrotóxicos.
E não está escrito em lugar algum que teremos um futuro grandioso pela frente. Até porque, pelas nossas ações, podemos dizer que Deus é brasileiro, mas o Diabo também. E se continuarmos maltratando o meio ambiente em nome do consumismo desenfreado e do lucro fácil, talvez nem tenhamos um futuro.
Neste 7 de setembro, ao invés de surfar no discurso superficial poderíamos refletir a razão de chamarmos indígenas de intrusos, sem-teto e sem-terra de criminosos, camponeses de entraves para o desenvolvimento, imigrantes bolivianos e haitianos de sujos. Pensar por que mulheres recebem, na média, menos que os homens quando exercem o mesmo serviço. Entender por que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Ou reivindicar que o terrorismo de Estado praticado na periferia das grandes cidades, em um genocídio lento dos jovens negros em nome de uma (irreal) sensação segurança dos mais abastados, pare.
Leitores binários da realidade bradam a quem fala de distribuição e igualdade em direitos que isso é coisa de uma bandeira vermelha enquanto a deles é verde-amarela. Bobagem.
Não temos que amar nosso país incondicionalmente, como não devemos amar nada incondicionalmente. Amar o Brasil significa nos dedicarmos a entender e ajudar a tornar isso aqui um local minimamente habitável para a grande maioria da população. E não para apenas aqueles que reconhecemos como iguais. E isso inclui apontar os crimes, os erros, as contradições.
Após quatro anos de governo autoritário, faz-se necessário ressignificar (mais uma vez) o Dia da Independência. No ano passado, Jair Bolsonaro rebaixou tanto a cerimônia do 7 de setembro que, durante um discurso rasteiro, puxou um coro para exaltar sua suposta potência sexual.
Após dizer que a então primeira-dama era uma mulher ativa em sua vida, ele sugeriu aos homens solteiros que todos deveriam se casar. “E eu tenho falado para os homens solteiros, para os solteiros que estão cansados de ser infelizes. Procure uma mulher, uma princesa, se casem com ela, para serem mais felizes ainda”, disse. Beijou então Michelle Bolsonaro e puxou coro de “imbrochável”.
Mas é sempre bom lembrar que após o breve intervalo do pão e circo de desfiles com tanques soltando fumaça preta em datas festivas, volta a realidade da falta, da ausência, da violência, da fome. Daí, a chance de ressignificar a ideia de independência.
O melhor de tudo é que todas as vezes que alguém levanta indagações sobre quem somos e a quem servimos ou conclama ao espírito crítico sobre o país, essa pessoa é acusada de não amar o Brasil, no melhor estilo “ame-o ou deixe-o” dos tempos da ditadura civil-militar e do período 2019-2022.
A verdade neste 7 de setembro é que para muitos, brasileiro bom é brasileiro que sabe o lugar e a função que lhes foram impostos pela vida e aceita isso sem questionar. É brasileira que serve calada, dorme em silêncio no quarto de empregada e garante que a bandeira esteja sempre bem levada, sem desbotar o verde e o amarelo.
Em tempo: Quando pequeno, lembro-me de ir a apenas um desfile do Dia da Independência, na avenida Tiradentes, aqui em São Paulo. Uma das maiores contribuições dos meus pais foi exatamente ter me poupado de tudo isso.
Publicado originalmente no UOL.