Por Sérgio Rodas
Por falta de imparcialidade do ex-juiz Sergio Moro e para assegurar ao ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral a garantia do devido processo legal, o juiz Eduardo Appio, da 13ª Vara Federal de Curitiba, anulou na noite desta terça-feira (2/5) todas as decisões tomadas contra o político na finada “lava jato”.
Entre as ordens invalidadas estão a sentença na qual Moro condenou Cabral a 14 anos e dois meses de reclusão e a prisão preventiva do ex-governador. Appio determinou a retirada do nome de Sérgio Cabral do Banco Nacional de Mandados e a revogação de qualquer restrição de direitos imposta pela 13ª Vara Federal de Curitiba.
Após o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, hoje aposentado, permitir que o ex-governador do Rio tivesse acesso às conversas entre procuradores da “lava jato” e Sergio Moro, apreendidas na operação “spoofing”, a defesa de Cabral pediu o reconhecimento da parcialidade de Moro.
Em sua decisão, Appio destacou que as mensagens entre o hoje senador Moro (União Brasil-PR) e o ex-procurador Deltan Dallagnol, hoje deputado federal (Podemos-PR), “demonstram, de forma absolutamente segura e irrefutável, que existem indícios mais do que suficientes de cumplicidade entre estes dois agentes do Estado brasileiro, em desfavor de um acusado em processo criminal (Cabral)”.
“Os diálogos não encontram nenhum precedente na História do Judiciário brasileiro e, certamente, contaminam as próprias bases da jurisdição. Em uma democracia, a certeza da imparcialidade do juiz da causa criminal, somada a um eficiente sistema que defina, de antemão, as competências dentro das quais o magistrado criminal pode atuar, são os dois grandes pilares que traduzem, na prática, a garantia do devido processo legal”, afirmou o juiz.
Em 13 de junho de 2017, o procurador Athayde Ribeiro Costa repassou aos seus colegas mensagem de recebeu “da Russia” — eles chamavam Moro de “Russo”: “Sentenciado o caso do Cabral. Encerrada minha parte, tomo a liberdade de congratulá-lo pela investigação dos crimes de lavagem do caso. Realmente impressionante. Simples, mas fatal”.
Para a defesa de Cabral, o trecho “encerrada minha parte” demonstra a existência de uma combinação prévia entre o juiz (Moro) e os procuradores. “Com a sentença condenatória, a parte do juízo no acordo estaria cumprida”. Essa interpretação, segundo os advogados, é corroborada pela mensagem de Dallagnol, em 14 de dezembro de 2016, informando que a denúncia contra Cabral “será protocolada amanhã”. Moro respondeu com um emoji sorridente e a frase “um bom dia afinal”.
Eduardo Appio ressaltou que as conversas — que tiveram sua autenticidade declarada pela Polícia Federal — não servem para a abertura de inquérito policial ou ação penal contra os procuradores e Moro, mas podem ser usadas pela defesa para a anulação de decisões judiciais contra acusados.
Se a Justiça Criminal depende da imparcialidade dos juízes, todos os atos decisórios praticados por Sergio Moro contra Sérgio Cabral são “absolutamente nulos” e não podem produzir nenhum efeito contra o político, disse Appio.
O juiz destacou que a atuação de advogados e do STF, especialmente dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, “permitiu que o Direito e a Constituição sobrevivessem no Brasil”.
De acordo com o julgador, o Supremo, aos poucos, foi freando os abusos da “lava jato” e reconstruindo “os principais pilares do Direito brasileiro”.
“Começou proibindo as chamadas conduções coercitivas (todas devidamente espetacularizadas pelas câmeras de tevê), restringindo a excessiva liberdade (discricionariedade) dos agentes de Estado nas colaborações premiadas, delimitando a competência para julgar desta 13ª Vara Federal de Curitiba e, finalmente, estabelecendo que as prisões cautelares não podem ser instrumento de extração de confissões ou delações”, citou Appio.
Nesse sentido, declarou o magistrado, a “magistral obra” Prisões preventivas da Lava Jato — Uma análise empírica e crítica de seus fundamentos (Editora Amanuense), de Álvaro Chaves, desnuda “um cenário somente concebível em países não democráticos, como da Alemanha na década de 30 ou a União Soviética no apogeu de Stálin”.
“O Direito Penal como espetáculo, expondo ao distinto público — em doses homeopáticas — os acusados execrados em via pública, devidamente algemados dos pés à cabeça — como no caso do acusado Sérgio Cabral — deveria ser ensinado nas faculdades de Direito do país como um verdadeiro case de como não se pode conceber o processo penal em um país democrático”, opinou Appio.
A defesa de Sérgio Cabral, comandada pelos advogados Patrícia Proetti e Carlos Eduardo Frazão, ressalta “a decisão precisa do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, que reconheceu a parcialidade com que o ex-juiz Sergio Moro conduziu a ação penal contra o ex-governador Sérgio Cabral, após ter sido autorizada pelo ministro Ricardo Lewandowski a utilização das provas públicas oriundas da operação spoofting”. Para eles, “este é um grande passo em defesa do devido processo legal e do Estado democrático de Direito”.
Outra suspeição de Moro
Não é a primeira vez que o Judiciário reconhece a falta de imparcialidade de Sergio Moro. A 2ª Turma do STF declarou, em 2021, a suspeição do ex-juiz para julgar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá (SP) (HC 164.493). A decisão foi posteriormente confirmada pelo Plenário da corte.
Depois, o ministro Gilmar Mendes estendeu a suspeição de Moro às ações contra o petista nos casos do sítio de Atibaia e do Instituto Lula, anulando todos os atos praticados pelo ex-juiz nos processos, inclusive a condenação que acabou por tirar Lula das eleições de 2018.
O Supremo também declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, da qual Moro era titular, para processar e julgar quatro processos contra Lula. Os ministros entenderam que os crimes atribuídos ao atual presidente pelo Ministério Público Federal do Paraná não têm conexão com a Petrobras e, por isso, não devem ficar no Paraná.
Com as decisões, as condenações de Lula nos casos do tríplex e do sítio foram anuladas. O petista recuperou todos os seus direitos políticos, tornando-se novamente elegível. Com isso, ele foi eleito presidente no pleito de 2022.
Histórico de Cabral
Sérgio Cabral foi preso preventivamente no âmbito da “lava jato” em 17 de novembro de 2016, por ordem de Moro. Posteriormente, ele foi alvo de mandados de prisão do juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, e da Justiça fluminense.
Na transferência do ex-governador do Rio para o Complexo Médico-Penal de Pinhais, no Paraná, em 2018, o político teve os pés e as mãos algemados e usava um cinto que prendia seus pulsos, para que sequer levantasse os braços.
Advogados e professores consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico consideraram abusiva a atitude da polícia, uma vez que não há registro de episódios de violência cometidos pelo ex-governador. Muitos lembraram da Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal. Ela determina que “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito”.
Os policiais federais responsáveis pela ação alegaram que Cabral teve suas mãos e pés algemados ao ser transferido para uma prisão de Curitiba porque, se ficasse solto, poderia entrar em confronto com uma “multidão ensandecida”, colocando em risco sua integridade física. No entanto, as fotos da cena analisadas pelo juiz Ali Mazloum, então auxiliar do Supremo Tribunal Federal, do gabinete do ministro Gilmar Mendes, mostraram pouquíssimas pessoas no local.
Posteriormente, a 2ª Turma do Supremo determinou que Cabral retornasse ao Rio. Os ministros também proibiram o uso de algemas no deslocamento. Além disso, Gilmar Mendes mandou abrir uma investigação para apurar abuso de autoridade no triplo agrilhoamento do político.
Em dezembro de 2022, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal considerou abusiva a prisão preventiva do ex-governador. Os ministros entenderam que não era possível manter Cabral detido desde 2016 por fatos ocorridos em 2008 e 2009. Além disso, o ministro Gilmar Mendes, que desempatou o julgamento e garantiu a soltura do ex-governador, ressaltou que ele estava preso havia seis anos, o que caracterizou antecipação de pena — prática proibida pelo STF.
Por excesso de prazo e falta de justificativa para manutenção da medida, a 1ª Seção Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região revogou, em fevereiro, a última ordem de prisão domiciliar contra o ex-governador. Dessa maneira, o político, o último grande alvo da “lava jato” que estava encarcerado, pôde ser libertado após mais de seis anos.
O ex-governador foi condenado em 24 ações penais, sendo 23 decorrentes de desdobramentos da finada “lava jato” e outra relacionada ao uso de helicópteros do Rio para viagens pessoais. No total, as penas impostas a Sérgio Cabral chegaram a 436 anos e nove meses de prisão, mas sua defesa recorreu em todos os processos e diversas decisões já foram anuladas.
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Processo 5063271-36.2016.4.04.7000
Publicado originalmente em Conjur