Publicado no JornalGGN.
POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça.
A presença, terça feira, de Deltan Dallagnol na Comissão Especial que examina o projeto de lei relativo às “10 Medidas” proposto pelo Ministério Público Federal (MPF) com uso populista do instrumento de iniciativa popular, teve algo de grotesco. Estava o procurador cercado de militantes do sedizente “Movimento Brasil Livre” (mais conhecido como a turma do Quim Cataguiri, que esquece de ir às ruas para pedir a cabeça de Geddel Vieira Lima), a regozijar-se com sua popularidade, sob fortes holofotes da mídia.
Ingressei no MPF em 1987, época em que buscávamos nossa inserção na sociedade civil, mais ouvindo do que falando. Colegas participaram do Primeiro Encontro dos Povos da Floresta no Acre, outros se juntaram à Ação pela Cidadania liderada pelo saudoso Senador Severo Gomes e mais outros se articulavam com o movimento indigenista. Ninguém tentava impor agendas, buscávamos discretamente identificar demandas e usávamos nossas atribuições para vir em seu apoio.
Nosso perfil institucional era baixo. E entendíamos que era importante mantê-lo assim, para não desviar de nossos propósitos, na luta por um Brasil mais respeitador de direitos. Foi assim que a sociedade foi reconhecendo, aos poucos, a importância do ministério público nas agendas de direitos humanos, individuais e coletivos. De uma relação de desconfiança (não são evidentes virtudes de um órgão de estado vinculado à repressão), foi-se solidificando uma profícua parceria.
Na constituinte de 1987-1988, fomos festejados com entusiasmo por muitos parlamentares identificados com o esforço de democratização das relações sociais e logramos ser enormemente fortalecidos no nosso estatuto constitucional. Agora éramos erigidos à condição de instituição defensora da democracia e dos direitos fundamentais. Nunca houve na história do Brasil galardão maior para o ministério público. Mas, também, nunca tínhamos recebido responsabilidade mais grave do que essa e corresponder-lhe seria missão delicada. É mais fácil perder a confiança do que conquistá-la. Manter o baixo perfil, fugir do personalismo, cultivar autocontenção e ter mais ouvidos do que boca seriam condições fundamentais para preservar nosso papel no estado brasileiro.
Esse modelo de ministério público prevaleceu, pode-se se dizer a grosso modo, até o impeachment do presidente Collor de Mello. A visibilidade enorme que o lado punitivista das funções ministeriais recebeu então na mídia reforçou muito o prestígio da atuação em matéria criminal. Aliado a isso, atraiu muitos jovens que se miravam no exemplo dos procuradores sérios e “incorrompíveis”. Esse perfil de jovem foi a clientela de inúmeros concursos desde então, com raras exceções, é claro.
Com o passar dos anos, assistimos ao crescimento da atuação criminal sobre a tutela coletiva. Cada vez mais, procuradores enfrentavam administradores e políticos, seja na persecução de crimes financeiros ou contra a administração, seja na propositura de ações de improbidade.
O modelo mais punitivista do que resolutivo da atuação do ministério público foi cristalizando mentalidade moralista na instituição, vendo-se, muitos procuradores, como vocacionados a esgrimir a espada afiada da justiça. E, convenhamos, se dá Ibope, mais fácil é agir pelo viés da culpa, do que pelo viés da solução de problemas.
Paralelamente, o poder de fogo do ministério público lhe conferiu muito prestígio numa sociedade bombardeada por notícias interesseiras de malfeitos dos outros. Esse poder de fogo foi correspondido com o crescimento dos ganhos da categoria. Logo se verificou que, quanto mais risco se produzia, mais fácil a administração cedia aos reclamos de aumento de subsídios. Procuradores não precisaram jamais fazer greve, sempre foram atendidos com toda pompa em gabinetes parlamentares e governamentais.
Criou-se um ciclo vicioso na instituição, em que objetivos corporativos foram se mesclando com fins institucionais. A Força Tarefa da chamada Operação Lava Jato é o exemplo mais eloquente disso. Trata-se de iniciativa de jovens procuradores da república, embevecidos com seu poder de fogo e muito cúpidos em aparecer na mídia para posarem de bons moços, enfim, o “lado do bem”. Esse marketing é essencial para alavancar a corporação para patamares mais altos de prestígio social e de reconhecimento como ativo essencial do estado, merecedor de maior investimento orçamentário.
Não é à toa que propostas de “combate” ao mal vêm acompanhadas de sugestões de incremento de meios financeiros através da apropriação de parte dos recursos desviados por ações criminosas, com escopo de destiná-la ao orçamento do ministério público. Por isso, também, a reação da Procuradoria-Geral da República à PEC 241 (PEC 55 no Senado) não foi de desafiar sua constitucionalidade por conta da inviabilização de direitos fundamentais e, sim, de fazê-lo por restringir sua iniciativa orçamentária: quando o pirão é pouco, o meu primeiro.
As chamadas “10 Medidas” são mais do mesmo: uma tentativa de sacrificar garantias fundamentais em nome do “combate” à corrupção. Como é feia essa expressão “combate”, pois pressupõe uma “guerra”, em que “os criminosos” são os “inimigos” – assim como qualquer um que ouse se opor a essa empreitada (esses são os “desonestos”, na visão estreita do Procurador-Geral da República).
Desonesta é a iniciativa em si. Tomando forma de “iniciativa popular”, dela nada tem. As propostas foram elaboradas por um seleto grupinho de procuradores vinculados à Operação Lava Jato, sem maior discussão interna. Foram abraçadas pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (órgão da cúpula institucional) e pelo próprio Procurador-Geral da República. O marketing das medidas foi feito no sítio oficial do MPF na rede mundial de computadores e vários veículos de serviço foram envelopados com a publicidade das medidas Brasil afora. Tudo com recursos públicos.
Colher 2.000.000 de assinaturas foi a parte mais fácil com esse apoio de campanha publicitária oficial e com o induzimento permanente, na opinião pública, de que o mal maior a “combater” no Brasil é a corrupção. O MPF é ator que carrega a maior responsabilidade pela disseminação da obsessão nacional pelo tema da corrupção, que conseguiu empurrar para o fundo do palco a luta por direitos, a luta pela inclusão, a luta contra a desigualdade social, esta sim, o maior problema brasileiro.
E o MPF não é um ator desinteressado nesse “combate” que estimula. Dele depende hoje a intangibilidade de seu perfil institucional (e corporativo) vigente, pois muitos outros atores políticos já se deram conta da disfuncionalidade desse “monstro” (apud Ministro José Paulo Sepulveda Pertence, procurador-geral à época da constituinte) em que o ministério público se transformou ao longo das últimas duas décadas. E só mantendo aceso o fogo do moralismo punitivista conseguem, os procuradores da república, afastar, hoje, qualquer iniciativa de redução de seu status e de mudança do regime de atuação do órgão.
O uso indevido da iniciativa popular como forma de apresentação das “10 Medidas” configura, em verdade, profunda deslealdade para com o legislativo. Quer-se submetê-lo à pressão do clamor das ruas, ferindo o princípio do convívio harmônico entre os poderes. O MPF teria meios mais idôneos para colocar em debate parlamentar propostas de controle da corrupção. Tem o Procurador-Geral da República iniciativa legislativa no que toca à atuação da instituição. Tem, ele, também, acesso permanente aos chefes de poderes para fazer suas propostas dentro de um quadro de cooperação. Então para quê essa iniciativa popular travestida? É porque a instituição ministerial não tem confiança e sabe que dela também deixou de gozar, na relação com os demais poderes, dada sua reiterada atuação conflitiva, com finalidade de reforçar sua musculatura reivindicativa.
Chegou a hora da verdade, quando a Câmara dos Deputados está a discutir o relatório do deputado Onyx Lorenzoni sobre as medidas. A presença de Deltan Dallagnol nesse teatro não significa nada de bom. É mais uma desaforada “pressãozinha” sobre a comissão especial, não tendo o membro do MPF sequer escrúpulos de se mostrar rodeado pelo que há de pior no cenário político brasileiro: os militantes celerados e seletivos do MBL, verdadeira “Sturmabteilung” (SA) formada pela oposição ao governo legítimo de Dilma Rousseff, para desestabilizá-lo e criar um ambiente de comoção social no País.
As medidas propostas, aliás, se coadunam bem com esse espírito de “Sturmabteilung”. Reforça-se na ordem jurídica brasileira o direito penal da pessoa, em contraposição ao direito penal dos fatos. Essa visão fascista da função punitiva do estado pressupõe que há pessoas mais ou menos inclinadas ao crime. E as que revelam essa inclinação não merecem outra coisa que serem expurgadas da comunidade sadia do povo: “ausgemerzt aus der gesunden Volksgemeinschaft”, no melhor jargão nacional-socialista. Cria-se, assim, a figura essencial do inimigo do povo, bode expiatório necessário para mobilizar o ódio cego da coletividade e torná-la servil aos que querem conduzi-la para fora do “lamaçal” da política parlamentar e partidária. O que sobra depois é somente um líder “moral” autoproclamado que pretenda governar contra os direitos e sepultar a própria política.
Apenas para exemplificar, examinemos algumas das propostas, sem esforço de exauri-las, dados os naturais limites deste artigo.
Uma das medidas pretende tornar obrigatórios, no serviço público, os chamados “testes de integridade”, verdadeiro ataque à dignidade humana. Servidores devem se submeter a situações simuladas, sem seu conhecimento, de tentativa de corrupção. Se o servidor falhar e aceitar a ilusória propina, será afastado do serviço público. Lembra-me a prática escravocrata de madames que querem testar a honestidade de suas criadas domésticas. Colocam um anel de ouro sobre a mesa para incitar a empregada ao furto e uma câmera escondida. Flagrada no “crime”, a mesma é dispensada por justa causa! Ocorre que nenhum juiz do trabalho consciente sacramentaria essa prática degradante. E por que deveríamos tolera-lá no serviço público? Parece-me que o estado deve dar exemplo de integridade na relação de trabalho e não se portar como um escravocrata.
Outra medida trata da convalidação de prova ilícita colhida de “boa fé”. Como em várias outras propostas, cuida-se de enfraquecer a defesa e de “turbinar” a acusação, de certa “meganhização” da persecução penal.
É importante lembrar que garantias processuais existem para estabelecer um contrapeso ao desproporcional poder do estado na contenda contra cidadãos individuais. Falar em paridade de armas no processo penal é um despropósito. A assimetria entre acusação e defesa é tamanha, que se impõe reforçar os direitos do imputado. A acusação, no Brasil, senta ao lado do juiz. Nos tribunais, ao lado do presidente. Com ele cochicha e depois participa do lanchinho dos magistrados, numa relação marcada por tapinhas nas costas. Os advogados não gozam desse privilégio. Submetem-se a horas de chá de cadeira, são muitas vezes recebidos sem qualquer interesse ou gentileza do magistrado, sobem à tribuna para defender seus constituintes e expõem suas teses orais enquanto os magistrados ficam ostensivamente batendo papo entre si.
Chega a ser um escárnio à cidadania querer, nesse contexto, facilitar ainda mais o trabalho da acusação. Antes de mais nada, cumpriria tirar o acusador do lado do juiz, fazê-lo subir à tribuna para se expor ao contraditório real de teses e vedar-lhe a frequência anti-republicana aos lanchinhos com tapinhas nas costas.
Os poderes investigatórios da acusação são quase ilimitados e frequentemente se nega à defesa o acesso pleno aos elementos de convicção colhidos. O mínimo que se deve exigir que esses elementos sejam arrecadados num quadro de indiscutível legalidade. Convalidar prova ilícita é abrir a caixa de Pandora para mais abuso, mais autoritarismo e menos direitos. Desequilibra fundamentalmente a relação processual.
O direito brasileiro, desde o processo contra Collor de Mello, no Supremo Tribunal Federal, se guia, na validação da prova, pelo princípio da árvore envenenada, de origem norte-americana. Todas as provas derivadas de prova ilícita são nulas, como a prova ilícita em si. É curioso que o ministério público em sua travestida iniciativa popular, se ampara, em algumas das medidas propostas, no direito comparado norte-americano, mas só no que facilita a acusação. Quando se tem instituto da mesma origem que protege os direitos da defesa, quer-se eliminá-lo na experiência brasileira. A esse tipo de oportunismo jurídico pode-se chamar de “law shopping” e consiste em se servir a gosto do vasto cardápio de institutos encontradiços no direito comparado, fora de seu contexto e isolados de seu sistema de compensações. O direito norte-americano pode dar enormes poderes às autoridades persecutórias, mas impõe-lhes gravames correspondentes. Optar por trazer ao direito brasileiro os poderes excepcionais sem esses gravames leva a uma situação absurda de desprezo a direitos e garantias processuais.
Nessa mesma linha também está a tentativa de se acabar com a prescrição retroativa. Cria-se com essa medida enorme zona de conforto para a acusação. A prescrição retroativa, aquela que extingue a punibilidade a partir da pena aplicada pelo juiz no caso concreto, incidindo sobre o prazo excessivo entre o fato e a denúncia ou entre esta e a condenação, foi estabelecida pela reforma do Código Penal de 1984. A intenção era claramente a de obrigar a acusação e o juízo criminal a agir com maior celeridade e eficiência, mormente num País onde a vasta maioria dos encarcerados está a aguardar ainda pelo início do processo ou por seu desfecho, isto é, não contam com uma sentença condenatória. A se por fim a esse tipo de prescrição, a tendência será o enorme aumento do número de detentos sem sentença no País e a maior demora na atuação da justiça criminal, tornando-a um cágado de ineficiência, mas, claro escondido por detrás do direito de o ministério público se haver com maior lentidão em detrimento da segurança jurídica dos imputados.
Só esses exemplos mostram a que vieram as “10 Medidas”: tornar mais abusado quem abusa de nossos direitos. Sim, porque no Brasil, para ser acusado e preso, basta estar no lugar errado, na hora errada. Quem não deve, faz bem em temer tanto quanto quem deve, porque se você não deve, o ministério público pode dar um jeito de vir a dever.
Os procuradores da república são tudo menos salvadores duma sociedade corrompida. Não há razão para festejar Deltan Dallagnol ao se dispor, este, a colocar contra a parede o legislativo. O parlamento pode não ser santo (e de fato não é, como se constatou ao longo do golpe parlamentar contra a presidenta legítima e como se continua a constatar com a recente iniciativa de se auto-anistiarem, os parlamentares, por seus malfeitos no trato com recursos públicos), mas é nosso único instrumento para deter o crescimento da arbitrariedade policial-judicial-midiática no neste País e conter o leviatã do ministério público, que não cabe em si de tanto poder que acumulou ao longo dos anos de Força Tarefa da Operação Lava Jato e de omissões da cúpula do judiciário em por limites ao apetite populista de seus protagonistas.