As esquerdas e as bolsas das Virgínias. Por Leonardo Mendes

Atualizado em 31 de outubro de 2024 às 3:53
Virgínia e sua bolsa: toda influencer é uma idiota?

As esquerdas têm que aprender a utilizar melhor o farto material de atrocidades oferecidos diariamente pelo capitalismo tardio. Para isso é preciso pouca coisa, que tentarei sintetizar de modo esquemático.

Primeiro é necessário uma curadoria cuidadosa atenta às redes, focada em identificar temas com potencial de despertar indignação e revolta, principalmente contra a desigualdade, esse tema central que unifica toda e qualquer posição de esquerda.

Exemplo recente que ainda repercute é a ostentação de uma bolsa avaliada em quase meio milhão de reais por parte da influenciadora Virgínia Fonseca, esposa de um dos filhos do cantor sertanejo bolsonarista Leonardo, envolvido recentemente também em denúncias de trabalho análogo à escravidão em suas fazendas.

As esquerdas não podem ser ingênuas a ponto de acreditar que isso não é notícia, não merece análise, pesquisa, pois é exatamente esse tipo de coisa que mais pode nos ajudar na disputa por corações e mentes.

Trata-se da nossa mamadeira de piroca, nosso efeito colateral da vacinação. Carluxo certamente poderia escrever milhares de frases alucinógenas a respeito, trabalhasse ele do nosso lado.

Selecionado o tema, é preciso agora apresentar motivos justos para a indignação e revolta popular. Deve-se sempre partir do princípio de que o interlocutor é alguém que não viu nada demais naquilo, alguém disposto a defender com unhas, dentes e posts as Virgínias da vida, mesmo sendo pobre.

A princípio, nunca devemos dirigir nossas argumentações aos ricos. Não sejamos ingênuos de querer ensinar tratados de ética ou oferecer lições de moral a gente que gasta 500 mil numa bolsa.

Virgínia, por exemplo, é apresentadora do Teleton, e a imagino indo apresentar o evento de caridade portando essa bolsa, ao mesmo tempo em que, muito emocionada, solicita a você, pobre, que abra seu coração e doe em auxílio às crianças com deficiência.

Ricos em geral tem certeza de que são ótimas pessoas, que mereceram poder comprar seus mimos, independente de terem enriquecido por herança, casamento, tutorial de maquiagem ou exploração de mão de obra análoga à escravidão. É perda de tempo tentar convencê-los do contrário e não precisamos disso. Muito mais necessário é nos dirigir a nossos pares pobres, sejam eles miseráveis, remediados ou pobres premium de direita.

Também não no sentido de convencê-los, e esse parece um problema sério nas esquerdas, uma espécie de síndrome professoral que ataca desde a mais tenra infância da razão.

Tentar convencer alguém do que quer que seja é sempre uma violência, uma tentativa de colonização do outro, já dizia Saramago, mas ninguém precisa ser convencido a se indignar diante da barbárie. E é disso que se trata, numa sociedade em que milhões ainda vivem em insegurança alimentar, enquanto outros podem torrar meio milhão numa sacola de carregar pertences.

O que cabe às esquerdas parece mais um trabalho semelhante ao que fazia Sócrates, na Grécia. Não se trata de apresentar respostas, e sim perguntas. Tratar as pessoas como seres inteligentes, capazes de raciocínio próprio, desde que devidamente provocado.

Virgínia é um exemplo de possível catalisador de processos reflexivos em larga escala. É difícil para as direitas, sejam elas tradicionais, bolsonaristas, neopentecostais, convencer um trabalhador que luta para conseguir alimentar a família de que tudo bem os ricos limparem a bunda com dinheiro. Precisam vender o sonho de que com muito esforço, oração ou malandragem qualquer um poderia se limpar também.

Que só não prospera quem não faz por merecer, quem não alcança as frequências vibratórias adequadas ou não dá dinheiro para igreja, e isso contra todas as evidências empíricas demonstrando o contrário. Melhor focar nas pautas dos costumes, demonizar LGBTs, nordestinos, petistas, imigrantes…

O trabalho das esquerdas parece mais fácil nesse sentido. Não precisamos enganar ninguém e o capitalismo tardio já nos oferece todo o necessário aos nossos propósitos, sem nenhuma necessidade de apelar a fake news, pois é tudo verdade.

Milionários que enriquecem com dancinhas de tiktok ou bilionários de famílias de latifundiários torram suas fortunas em todo tipo de futilidade estúpida, enquanto o planeta se aproxima do colapso climático provocado em grande parte pelos delírios inconsequentes e excessos dos podres de ricos.

Milhões de famílias de trabalhadores vivem abaixo da linha da miséria, com esgoto a céu aberto e parede madeirite.

Virgínia vai apresentar o Teleton e pedir doações ao telespectador pobre do SBT.

É tudo verdade, cremos porque absurdo.