Publicado originalmente no blog do autor
A jornalista Patrícia Campos Mello escreveu um longo texto sobre os ataques que sofreu de Bolsonaro e sobre as sequelas do seu drama pessoal e de colegas jornalistas em situação semelhante. É o Dia Internacional da Mulher, e lá está o seu desabafo na Folha.
Mas a jornalista perdeu a chance de escrever um texto que fosse além do seu caso e do seu ambiente e levasse o tema para o seu contexto. Patrícia foi jornalista demais citando outras colegas agredidas por Bolsonaro, foi quase corporativa e foi esquecida.
Patrícia esqueceu de fazer uma referência, uma só, aos ataques históricos de Bolsonaro contra a mulher que ele mais agrediu, repetida e sistematicamente, e a que mais reagiu com destemor às agressões covardes.
Patrícia esqueceu de dizer que a deputada Maria do Rosário foi, há muitos anos, a mulher escolhida por Bolsonaro para agredir todas as mulheres brasileiras.
Esqueceu de citar, numa linha, apenas uma linha, que Maria do Rosário processa Bolsonaro no Supremo e que o caso está numa gaveta, porque o sujeito não pode ser processado agora por atos anteriores ao mandato. Mas as acusações estão lá e em algum momento terão de ser desengavetadas.
Não vamos repetir nada do que ele disse a respeito de Maria do Rosário, porque todos sabem. Mas Patrícia não deve saber mais.
Patrícia esqueceu que Dilma foi derrubada por um movimento da direita com forte conotação de misoginia. Que Bolsonaro foi um dos líderes do golpe e que, citando o torturador, voltou a torturar Dilma publicamente.
Não há no artigo uma referência a Marielle, assassinada por um vizinho de Bolsonaro e até hoje agredida em manifestações de bolsonaristas.
Patrícia não diz, em nenhum momento, que mulheres quase invisíveis são mortas no Brasil sob o incentivo do bolsonarismo. Patrícia sabe que o feminicídio é o crime clássico, definidor do bolsonarista.
Não há no texto nenhuma referência às agressões de Bolsonaro a Gleisi Hoffmann, presidente do PT. Não há citação alguma aos ataques a negros, índios, gays e transgêneros.
Patrícia resume as agressões de Bolsonaro às jornalistas, porque as jornalistas sentem agora o que outras mulheres, outros segmentos e outras categorias sociais sentem há muito tempo.
Patrícia não cita Dilma, nem Marielle, nem Rosário, nem Gleisi porque talvez sejam de esquerda e políticas. O texto é apenas sobre as jornalistas, como se todas estivessem numa ilha, e até o título induz a uma ilusão. Este é o título:
“No Brasil, ser mulher nos transforma em alvo de ataques”.
Enganaram-se os que esperavam ler o relato pessoal que conduziria a uma reflexão sobre as agressões a todas as mulheres alvos de Bolsonaro.
Não. Ser mulher, no texto de Patrícia, é ser jornalista. Patrícia escreveu um texto apenas corporativo, auto-referente, como se todo o entorno, e que entorno, não merecesse nenhuma observação. E Patrícia é uma grande repórter.
Todos e todas, homens, mulheres, gays, trans, refletiram sobre os ataques de Bolsonaro a Patrícia. As deputadas Luiza Erundina, Fernanda Melchionna, Natália Bonavides, Marília Arraes, Rosa Neide, Gleisi, Maria do Rosário e outras mulheres democratas do Congresso foram à tribuna, em grupo, em defesa de Patrícia.
Nenhuma é citada por Patrícia. Nem Preta Gil, que também já foi agredida. Nem Benedita da Silva. Nem dona Marisa Letícia, atacada depois de morta. Nem os gays do PSOL, que ele definiu como um partido de veados para agredir Jean Wyllys.
A reflexão é centrada no umbigo do jornalismo da grande imprensa. Patrícia escreveu um artigo sobre a categoria e apenas ameaçou contextualizar com generalidades o seu relato, que é doloroso, mas é incompleto.