Publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)
POR TÁBATA VIAPIANA E ANDRÉ BOSELLI
A morte de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos espancado por dois seguranças de um Carrefour de Porto Alegre, é um exemplo de que o público e o privado no Brasil estão, por vários meios, consorciados na prática de violência e abusividade programada contra pessoas negras.
A opinião é de especialistas ouvidos pela ConJur após o Ministério Público Federal divulgar uma nota em que pede ao Carrefour que adote políticas de compliance para combater o racismo estrutural. No documento, a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos diz que o processo de “filtragem racial” praticado por agentes estatais de segurança pública é replicado à exaustão nas empresas de segurança privada.
O pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da FGV-SP, Felipe da Silva Freitas, considerou correta a nota do MPF ao assinalar a necessidade de políticas de compliance para prevenir práticas abusivas e de filtragem racial por parte dos seguranças particulares. Segundo ele, filtros raciais nos critérios de abordagem das polícias e de seguranças privados já foram largamente constatados por inúmeras pesquisas nos últimos anos.
“A segurança privada é uma atividade de contornos jurídicos bastante limitados e que deve se autoconter para não ultrapassar o papel constitucional de policiamento ostensivo, que é exclusivo das polícias militares. A segurança privada pode atuar no âmbito da defesa patrimonial, mas com muitos limites e o mínimo contato físico possível. O dever que se impõe aos policiais, de não devassar ilegalmente a incolumidade física das pessoas, se aplica com maior rigor ainda aos agentes privados”, disse.
Sobre esse assunto, Freitas destacou decisões recentes em que o Poder Judiciário reconhece a existência de seletividade racial e apontou a necessidade de que as forças de segurança atuem para combatê-lo: “Na ADPF 635, que discute a questão da política de segurança pública do estado de Rio de Janeiro, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes foi bastante enfático ao reconhecer a existência de seletividade racial nas operações de segurança, bem como sublinhou a urgência de se adotar medidas para combatê-las”.
Policiais em empresas de segurança privada
Para Viviane Cubas, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência — da Universidade de São Paulo —, é bastante plausível a hipótese de que a filtragem racial feita por agentes públicos de segurança é replicada por vigilantes privados. Ela estudou a expansão das empresas de segurança privada na cidade de São Paulo.
Para Cubas, existe uma proximidade entre as polícias e as empresas de segurança. “Elas são privadas, mas a participação dos policiais nessas empresas é sempre muito presente. Quando o governo autorizou a criação das primeiras empresas de segurança, no final dos anos 1970, os profissionais que foram atuar nelas eram policiais. Não havia pessoal capacitado. Isso sempre se manteve, apesar da proibição”, afirmou.
Segundo a pesquisadora, há “vista grossa” para essa imbricação. “E ela acontece desde o alto escalão até o policial da ponta. Em diferentes níveis. Inclusive nas escolas de treinamento. A participação dos policiais no treinamento é muito presente. Ela está presente em todos os setores: como proprietários, como professores e até em contabilidade e serviços mais burocráticos. A proximidade é muito grande”, concluiu.
Freitas afirma que os limites da atuação da agentes de segurança particular são “costumeiramente rasurados pela presença, muitas vezes ilegal”, de agentes de segurança pública atuando como proprietários e/ou funcionários de empresas privadas de segurança.
“São lógicas distintas de serviços de segurança e são limites bastante diferenciados. Um agente público tem prerrogativas que não alcançam o agente privado; ao se confundir essas atribuições e prerrogativas, pratica-se não apenas uma grave ofensa às regras do serviço público, mas também se cria um injustificado risco adicional ao tipo de serviço de segurança privada oferecido”, completou.
Na nota divulgada após a morte de João Alberto, a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos citou o caso do ex-jogador de basquete Richard Augusto de Souza Pinto como “emblemático exemplo” desse processo de reprodução de práticas discriminatórias. O jogador foi seguido por um segurança do Pão de Açúcar durante todo o período em que fazia compras, por ser considerado “suspeito” apenas em razão da cor. O supermercado foi condenado a indenizar o atleta.
“Essas constatações são apenas pequenos fragmentos que compõem a imensa rede de racismo estrutural verificada em nossa sociedade, problema que está na origem de dados alarmantes, que demonstram o impacto desproporcional da violência sobre a população negra brasileira”, diz a nota do MPF.
Criminalização secundária
Segundo conceitos da Criminologia, o que chamamos de “crime” não é algo “ontológico”, que existe por si mesmo — uma espécie de “fato da natureza”. Antes disso, existe um processo referente, primeiramente, às escolhas das condutas que serão tidas como crimes. Essas escolhas variam ao longo do tempo e dependem de uma série de fatores.
Por exemplo, o adultério deixou de ser crime. Por outro lado, condutas relacionadas a maus tratos a animais têm recebido tratamento mais duro por parte do legislador. Esse primeiro processo é chamado de “criminalização primária”.
Além dele, existe também o que se chama de “criminalização secundária”, relacionada à aplicação da lei penal. Segundo a Criminologia, trata-se do enquadramento de certas pessoas como criminosas — e outras não. A criminalização secundária é feita pelo sistema de justiça criminal, que seleciona quem são os criminosos. A filtragem racial constatada pelas pesquisas empíricas é um dos estágios desse processo.
Sem se referir diretamente à questão racial, o jurista e sociólogo italiano Alessandro Baratta afirmou — no livro “Criminologia e Sistema Penal” — que “a máxima chance para ser sujeito de sanções estigmatizantes (o cárcere e outras instituições totais) aparece decididamente ligada ao fato de se pertencer a classes sociais mais baixas”.
Segundo o autor, “a posição precária no mercado de trabalho (desemprego, falta de qualificação profissional) e defeitos da socialização familiar e escolar, que são características dos que pertencem às classes sociais mais baixas e que na Criminologia positivista — e em boa parte da Criminologia liberal contemporânea — são indicados como a causa da criminalidade, revelam ser, na verdade, os signos sobre os quais o status de criminalidade são atribuídos”.
Morte de João Alberto
No caso da morte de João Alberto, o pesquisador da FGV-SP afirma que a situação parece ser a “clássica deformação característica das empresas” que contratam profissionais de segurança pública, no serviço conhecido como “bico”, e que “se beneficiam do vínculo público do profissional para com isso auferir vantagens particulares”.
“Essa situação é extremamente propensa a práticas abusivas e discriminatórias. São várias camadas de ilegalidade, clandestinidade e violência que criam e alimentam a violência e o horror”, afirmou Freitas. João Alberto foi velado e enterrado neste sábado (21/11) sob forte comoção de familiares e amigos.
Outros países
O racismo não é monopólio do Brasil. Casos antigos e recentes de assassinatos de cidadão negros por policiais americanos são prova de que as instituições daquele país pouco têm avançado.
Na França, conforme noticiou a ConJur, o software usado pelas delegacias para registro das atividades policiais tem um campo designado para expulsão de “indesejáveis”. Em uma atuação sistemática e reiterada em um conjunto habitacional popular, o Estado francês foi condenado civilmente a indenizar as vítimas — jovens de origem magrebina ou africana.