POR MARCOS DANHONI NEVES, professor titular da Universidade Estadual de Maringá, autor do livro “Lições da Escuridão”, entre outros
“Era como se a vergonha lhe devesse sobreviver”
(Joseph K. em “O Processo”, de Franz Kafka)
Nos 12 dias de folga que tirou para viajar aos EUA, o ministro Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia, levou uma funcionária da pasta com ele.
Pontes viajou para Orlando com sua assessora Christiane Gonçalves Correa, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Institucionais (afastada de 13 a 25 de julho).
Lendo essa reportagem recordei-me que, em 2012, eu havia convidado o ex-astronauta para uma palestra na Universidade Estadual de Maringá durante um grande evento que realizaríamos sobre Astronomia.
Quem me respondeu foi a “diretora executiva” da empresa “Portally Eventos e Produções”, Christiane G. Corrêa! Ou seja, sua atual assessora no ministério.
Achei estranha a correspondência via email ser respondida por uma companhia privada, pois acreditava que Marcos Pontes responderia como pessoa física.
Todo seu treinamento para ir ao espaço foi feito com recursos públicos para a “Missão Centenário” (em comemoração aos 100 anos da invenção do avião por Alberto Santos-Dumont).
A resposta enviada pela “Diretora Executiva” era uma palestra. O valor para três horas: R$ 10 mil. Como somos uma universidade pública, não dispúnhamos daquela verba para financiar um agente público.
Escrevi à Sra. Corrêa pedindo uma contraproposta. Ela respondeu sugerindo que comprássemos 250 livros dele.
Pontes é “autor” de “É Possível! Como transformar seus sonhos em realidade” e “Missão Cumprida – A História Completa da 1ª Missão Espacial Brasileira”, no valor de R$ 50 (valor total R$ 12.500,00).
Ou seja, passou a cobrar 25% a mais em relação à proposta original.
Não bastasse, as propostas continham outras exigências: “01 passagem aérea internacional pela companhia aérea Continental Airlines (Houston/ SP /Houston), para o Astronauta Marcos Pontes […] 02 ou 03 passagens domésticas SP/ Cidade do evento/ SP, para […] seus assessores; 02 ou 03 hospedagens completas – com frigobar (exceto bebidas alcoólicas), ligações, disponibilidade de banda larga no apartamento, alimentação com pensão completa, em apartamentos single; Traslado terrestre (aeroporto / hotel / evento / hotel / aeroporto)”.
As propostas vieram encartadas numa espécie de folder que abrir com uma grande foto de em vleestes próprias de seu ofício, mas sem o tradicional capacete.
O título era “MARCOS PONTES: O Primeiro Astronauta Brasileiro”. Até aí, tudo bem, mas a frase seguinte era surpreendente: “Sua empresa precisa de uma nova atitude, um novo comportamento” (com negrito nas frases “nova atitude” e “novo comportamento”).
O conteúdo do folder era ainda pior – um misto de astronáutica e papo furado sobre liderança administrativa:
“Interesses Gerais: a preparação completa e eficiente tem aspectos diversos. • Vivendo no espaço – Impacto sobre a fisiologia humana • Atividades Espaciais • Atividades Aeronáuticas • Preservação do Meio Ambiente • Atividades sociais • Projetos Multiculturais (Internacionais) Desenvolvimento Pessoal: saiba como descobrir e utilizar todo o potencial humano para o equilíbrio emocional e para o sucesso pessoal e profissional. • Persistência • Autoconfiança • Determinação • Potencial pessoal • Criatividade • Estabilidade emocional • Organização pessoal Corporativos: os recursos humanos são a parte mais valiosa do capital de qualquer empresa. Ideias, harmonia, sincronismo, metodologia e habilidades. No mercado competitivo de hoje, sobreviverão apenas às empresas mais preparadas. • Definição de Metas • Planejamento • Liderança • Trabalho em equipe • Gerenciamento de projetos • Gerenciamento de riscos • Segurança Operacional • Educacionais: treinamento e muito trabalho! Essas são as chaves da prosperidade. Mas é preciso saber como utilizar bem essas ferramentas! • Técnicas de preparação pessoal: É Possível! Como transformar seus sonhos em realidade • Processo decisório na carreira • Importância do treinamento • Importância da educação.”
Ainda: “Entre cerca de 7 bilhões de pessoas na superfície da Terra, apenas alguns, aproximadamente 400 representantes da humanidade, conseguiram chegar ao espaço e puderam ver o nosso Planeta e o firmamento em todo o seu esplendor. Marcos Pontes, o primeiro astronauta brasileiro, está entre essas poucas pessoas. São mais de 10 milhões de quilômetros rodados, muita história para contar e muito conhecimento para transmitir.” …
Como não tínhamos recursos para pagar esta palestra (cuja cobrança consideramos uma impropriedade), e como o perfil do astronauta tinha pouca tangência com a ciência astronômica, foco do evento, resolvemos não convidá-lo.
Hoje, como sabemos, o astronauta pediu aposentadoria meses após seu voo à estação espacial (ISS – International Space Station) com apenas 43 anos de idade.
Intensificou suas ações como palestrante e vendedor de travesseiros “da NASA” e o resto é história: Marcos Pontes tornou-se suplente de senador da canhestra figura do Major Olímpio e depois ministro de Bolsonaro.
Em sua mais recente patacoada, segurando-se no cargo, empreendeu cortes gigantescos, inviabilizando projetos científicos de ponta, extinguindo bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado, além de projetos de parceria internacional.
Para lacrar com o fascismo de Bolsonaro, demitiu o diretor do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Ricardo Galvão, fomentando a censura ao mapeamento remoto por satélites do imenso desmatamento na Amazônia.
Em 2006, Pontes foi alvo de investigação pelo Ministério Público Militar para apurar se havia violado o artigo 204 do Código Penal Militar, que proíbe o envolvimento de militares da ativa em qualquer atividade comercial.
Em setembro de 2017, documentos foram divulgados pelo jornal The Intercept e mostravam suposta condição de sócio da empresa Portally Eventos e Produções. Em agosto de 2018, após a investigação já ter prescrito, o recurso foi arquivado pela ministra Rosa Weber.
A assessora que passou 12 dias de folga em Orlando-EUA é a mesma que assinava as propostas da Portally Eventos e Produções.
Por que então Rosa Weber arquivou o processo?