Publicado originalmente no TUTAMÉIA
Quatro presidentes de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência divulgaram carta aberta em que afirmam que “as atuais diretrizes de Governo para Ciência e Tecnologia comprometem gravemente o desenvolvimento nacional, o bem público, o progresso da ciência e a defesa da soberania nacional”.
Assinado por Ennio Candotti, Otavio Guilherme Velho, Sergio Machado Rezende e Sergio Mascarenhas, o documento é endereçado ao ministro de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, Marcos Pontes.
O documento diz também:
“As mencionadas diretrizes de Governo, que hoje nos preocupam, indicam que as determinações constitucionais de fomentar o conhecimento e a ciência para promover o desenvolvimento e defender a Soberania Nacional estão sendo traídas. Trata-se de diretrizes políticas que fragilizam a própria capacidade de discernimento dos grandes desafios do mundo contemporâneo e destemperam os instrumentos de defesa da Soberania Nacional.”
A seguir, a íntegra do texto assinados pelos cientistas.
CARTA ABERTA
ao Exmo. Sr. Marcos Pontes
Ministro de Ciência, Tecnologia Inovação e Comunicações
Brasília 9 de maio de 2019
Exmo. Sr. Ministro,
Temos acompanhado as batalhas que V. Exa. tem travado nos últimos tempos para reverter os cortes orçamentários determinados pelo Ministério da Economia.
Parece-nos, no entanto, oportuno alertá-lo que as atuais diretrizes de Governo para Ciência e Tecnologia comprometem gravemente o desenvolvimento nacional, o bem público, o progresso da ciência e a defesa da soberania nacional. Estas diretrizes de Governo transcendem as questões orçamentárias.
O Sistema de Ciência e Tecnologia, seus institutos, universidades e agências de fomento têm contribuído nos últimos setenta anos para oferecer aos governos, ao sistema produtivo e à sociedade, conhecimentos que permitiram promover o desenvolvimento, elevar a produtividade da indústria e da agricultura, a compreensão de nossa sociedade e dos conflitos sociais que nela encontramos. Permitiram também que o Brasil ocupasse um lugar digno no quadro internacional do progresso científico.
Lembro que a concepção e redação da Constituição de ‘88 foi influenciada pelos conhecimentos e progressos científicos, alcançados até aquele momento por meio das pesquisas em nossos Institutos, Universidades e Centros de Pesquisa.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC teve a oportunidade e a honra de oferecer subsídios para a redação dos Artigos de Ciência e Tecnologia (Art 218), Meio Ambiente (Art. 225), Direitos humanos (Art 1 Art 4 e Art 5), dos Índios (Art 231) e da Educação (Art 205 a 214) e da Cultura (Art 215 e 216). Ciência Hoje No 30 p. 66-70, 1987, registra estas contribuições.
Durante os debates que precederam a redação da Carta Magna o conceito de Soberania Nacional foi enriquecido com a incorporação do princípio que para defende-lo é necessário o domínio do conhecimento de nossos recursos naturais e biodiversidade, da nossa cultura, história e sociedade, e sobretudo é necessário desenvolver a capacidade de acompanhar, e mesmo produzir, conhecimentos científicos novos que contribuam não apenas para reconhecer e explorar o patrimônio social, cultural e natural, mas também para o progresso da ciência básica e aplicada. De interesse nacional ou da própria humanidade.
Foi com esse propósito que se incluíram na Constituição os Artigos acima mencionados, em que se determina ser de interesse nacional o estudo e a proteção do patrimônio genético, da Amazônia, do Pantanal, da Mata Atlântica, da Caatinga e da Zona Costeira bem como do patrimônio cultural, arqueológico e paleontológico.
Foi por essa razão que no Art. 218 a Constituição “Facultou aos Estados e Municípios e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento do ensino e à pesquisa científica e tecnológica”.
Artigo que possibilitaria em 1990 incluir nas Constituições Estaduais os recursos vinculados que financiariam as Fundações de Apoio à Pesquisa.
As mencionadas diretrizes de Governo, que hoje nos preocupam, indicam que as determinações constitucionais de fomentar o conhecimento e a ciência para promover o desenvolvimento e defender a Soberania Nacional estão sendo traídas. Trata-se de diretrizes políticas que fragilizam a própria capacidade de discernimento dos grandes desafios do mundo contemporâneo e destemperam os instrumentos de defesa da Soberania Nacional.
Vejamos alguns exemplos entre tantos outros que as diferentes áreas das ciências naturais, humanas e sociais poderão trazer para o debate da política de C&T.
1. A Amazônia dificilmente pode ser defendida com armas de ferro e fogo. As informações relevantes do patrimônio genético presente no laboratório de biodiversidade que nela encontramos estão contidas em cápsulas de dimensões microscópicas: 10-6m. Fora do alcance dos detectores de metais e instrumentos de persuasão dos guardas de fronteira.
Esse patrimônio deve ser estudado e conhecido para ser protegido. Toda proteção é necessariamente seletiva e depende do conhecimento que acumulamos com nossas pesquisas.
A esse respeito devemos lembrar que na Amazônia existem apenas duas pós-graduações em Botânica. Deveríamos ter pelo menos 20 para cumprir as determinações constitucionais e subsidiar programas, civis ou militares, de defesa da Soberania Nacional sobre o patrimônio botânico.
2. Grandes investimentos vêm sendo realizados pelos países que lideram a economia mundial, na produção de alimentos fruto de novas descobertas da bioengenharia nas pesquisas com células tronco animais ou vegetais. Isto significa que em breve o boi perderá valor de mercado. É nosso dever alertar o ministério da Agricultura e Pecuária que é efêmera a glória dos seus atuais negócios. Uma nova agricultura deve ser pensada (o documento elaborado pela Embrapa “Visão 2030: O Futuro da Agricultura Brasileira” oferece importantes informações a respeito).
A política de Ciência e Tecnologia deveria preparar e subsidiar as diretrizes de Governo voltadas a garantir nossa soberania econômica e alimentar, além da territorial. A Amazônia nos oferece uma rica biblioteca de códigos genéticos da biodiversidade, ela é um imenso arquivo de uma grande variedade de células tronco. Essa biblioteca deveria ser melhor estudada, suas linguagens decifradas, antes de destruí-la para engordar gado.
3. Grandes investimentos vêm sendo realizados na área da Inteligência Artificial, pelos países que lideram a economia mundial e prezam por sua Soberania Nacional, um campo de conhecimento que revoluciona o próprio sistema de defesa de terra, mar e ar, exigindo que aos três tradicionais vetores da defesa, seja acrescentado um quarto, o da inteligência.
Acréscimo que exige um certo entendimento e cooperação, entre o Sistema de Ciência e Tecnologia civil e os tutores militares da defesa da Nação.
Um Sistema que desde suas origens (na criação do CNPq em 1950 e da Finep-FNDCT em 1970) se preocupou com a formação da competência científica e tecnológica, capaz de promover o desenvolvimento e defender a Soberania Nacional, em suas dimensões econômicas, sociais, militares e geopolíticas.
Há outros exemplos, que poderiam ser acrescentados, desde a computação quântica à química de produtos naturais, dos paleo estudos de nossas origens às culturas que ocuparam a Terra Brasilis desde tempos imemoriais.
Acreditamos enfim que atravessamos um momento de grandes decisões políticas, que podem vir a redefinir nosso lugar na Terra. Ocuparemos nos próximos tempos um lugar digno entre os países soberanos ou uma cela entre os subalternos? A inteligência o dirá.
É imperativo hoje denunciar que o atual Governo rompeu o pacto, registrado na Constituição de ‘88, que após vinte anos de ditadura, unia a sociedade: comunidade cientifica, política, trabalhadores, indústria, agricultura e mesmo as forças armadas, em torno de um Projeto de Desenvolvimento Nacional.
A história não perdoaria a nossa omissão neste momento e tanto menos perdoará o silêncio dos tutores da defesa da soberania de terra, mar e ar.
Assinam os Presidentes de Honra da SBPC:
Ennio Candotti
Otavio Guilherme Velho
Sergio Machado Rezende
Sergio Mascarenhas