Moisés Mendes
Vai-se embora mais um ano que deixa rastros e heranças incômodas. Além da violência generalizada que não reflui, 2023 empurra para 2024 o extremismo e o negacionismo em todas as áreas.
Um negacionismo que, em algumas famílias, pode ter ficado confinado nas bolhas, mas que irá se manifestar em grupos de festas do ano novo e se reafirmar em 2024.
Não há como escapar de uma verdade incômoda. Mesmo que algumas neguem, todas as famílias brasileiras passaram a ter um parente que contesta verdades consagradas por todo tipo de comprovação. Como a de que a Terra é redonda.
Aquele primo negacionista é a encarnação, no século 21, do sujeito que na Idade Média contestava o formato da Terra.
Eratóstenes e Pitágoras, muito antes de Cristo, e depois Fernão de Magalhães e Iuri Gagarin provaram que a Terra é redonda. Mas aquele tio, pai daquele primo, e aquela sobrinha que adora aquele tio redescobriram que é plana.
Os indícios são de que o ano termina sem reduzir a convicção de 7% dos brasileiros de que a Terra é uma pizza, como já mostrou o Datafolha. De cada cinco brasileiros, dois ainda não têm certeza de que o homem foi à Lula.
É o mesmo índice dos que, no início da pandemia, anunciaram que não tomariam a vacina. Não é menor a taxa dos que não imunizam os filhos contra a poliomielite, o sarampo, a varíola.
São os nossos parentes, nossos vizinhos, nossos colegas de trabalho, com os quais convivemos em 2023. Eles não são da era antes de Cristo, nem na Idade Média. Estão ao nosso lado na era da inteligência artificial.
Professores universitários colocaram em dúvida a relevância da ciência e da vacina, a partir do que aconteceu na pandemia.
Carlos André Bulhões Mendes, reitor da Ufrgs, permitiu que todos os espaços da universidade acolhessem professores, servidores e estudantes, na volta do sistema presencial, sem exigir a prova de que estavam vacinados.
Mendes foi derrubado pelo conselho universitário, em dezembro, por ter, em meio a vários delitos na gestão da universidade, ser considerado negacionista.
Não, não foram só os absolutistas religiosos, com seus argumentos que colocam Deus acima de tudo, que afrontaram a ciência em 2023, como já vinham afrontando há muitos anos. Há entre eles gente com boa formação.
O considerado ignorante dos tempos bíblicos, que se juntou aos alienados e caçadores de bruxas da Idade Média, é agora um tipo do século 21.
O ano que se encerra foi ruim para esse contingente, pelo abalo político sofrido em 2022, mas eles continuam ativos. E muitos atribuem à ausência de marcianos o fracasso do golpe de 8 de janeiro.
O ministro Alexandre de Moraes visitou manés e terroristas presos nas cadeias de Brasília. Ouviu deles relatos de pura alucinação e delírio. Uma mulher disse ter invadido prédios dos três poderes por ordem de Deus.
Em nome de Deus, homens continuam agredindo mulheres, gays, negros, indígenas, trans. E um deles é seu tio. Um deles é aquele nosso primo, muitos com o apoio de mulheres da casa.
O ano novo chega arrastando as correntes de 2023, que já vieram de 2022 e de muitos antes. O ano velho normalizou aberrações incorporadas à nossa vida e vai embora nos avisando: 2024 talvez não seja muito diferente. Mas até quando?
Originalmente publicado em Extra Classe
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