PUBLICADO NO CONJUR
POR LENIO LUIZ STRECK
Bolsonaro editou medida provisória na qual a atividade religiosa é considerada serviço essencial para a sociedade, podendo, portanto, haver cultos etc. (como será o cuidado para manter a distância no culto, por exemplo?). Ou o Estado terá que colocar alguém para vigiar, gerando custos para a comunidade que não vai aos cultos?
Ou seja, colégios não são atividade essencial. Cultos e missas, sim. O Estado é laico, mas parece que o governo, não.
Em que medida a proibição de reuniões em igrejas atingiria o direito à fé do cristão? Não encontro resposta em algum dispositivo. Desde quando liberdade de crença quer dizer “liberdade de, mesmo em pandemia, os cultos funcionarem presencialmente?”. Vai saber.
Liberdade religiosa é como liberdade de ir e vir. Aliás, se se proíbe os cultos e missas, nem se está atingindo o direito à liberdade religiosa. E ao se proibir deslocamentos de pessoas nas ruas e parques, o direito de ir e vir sofre mais com essa intervenção estatal. Vejam a diferença de tratamentos.
De todo modo, como parece que os governantes e parcela das igrejas (seus mandatários e fiéis) não aceitam argumentos jurídicos, talvez aceitem argumentos teológicos. Vamos, pois, à Bíblia.
O Evangelista Mateus escreve no Capítulo 6, versículos 5 a 8 sobre isso:
‘E quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas. Eles gostam de ficar orando em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos outros. Eu lhes asseguro que eles já receberam sua plena recompensa.Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto.
Então seu Pai, que vê no secreto, o recompensará. E quando orarem, não fiquem sempre repetindo a mesma coisa, como fazem os pagãos. Eles pensam que por muito falarem serão ouvidos. Não sejam iguais a eles, porque o seu Pai sabe do que vocês precisam, antes mesmo de o pedirem.’
Está ali em Mateus, tim tim por tim tim.
Encontrei comentários de teólogos sobre esses dispositivos da Bíblia Sagrada. Há vasto material. A hermenêutica de Mateus, Marcos e Lucas, no ponto, é a seguinte: Deus quer que cada pessoa tenha com ele um contato pessoal e exclusivo. Por isso, a recomendação de sair da agitação, do meio das pessoas e ir a um lugar calmo e sossegado, sem ninguém ao redor parar orar, onde é possível falar com Deus sem interrupção ou perturbações. Esta é a recomendação de Jesus. Diferente da medida provisória do presidente.
E Jesus não só diz como isso dever feito; ele próprio praticou o que ele disse e recomendou. Em Mateus 14.23, após a multiplicação dos pães e peixes, Jesus despediu as multidões e foi… orar sozinho no alto do monte. Sozinho.
Também Marcos 1.35 conta que Jesus levantou alta madrugada e foi para um lugar deserto orar.
Em Lucas 6.12, lê-se que, antes da escolha dos doze discípulos, o Mestre se retirou para o monte… e, solo, orou a Deus.
Antes de ser preso, no jardim do Getsêmani, Jesus retirou-se sozinho para orar a Deus. Jesus procurava lugares de silêncio, de paz, de sossego para orar a Deus.
Sou leitor da Bíblica. E cristão. Portanto, não falo “de fora”. Há livros e sites na internet que mostram a clareza da Bíblia no sentido que você pode — e até deve — orar só. Portanto, não ir à Igreja durante uma pandemia não é pecado. Ao contrário, é cumprimento da palavra do Senhor. Ou, não é assim?
Com a inclusão da atividade religiosa como serviço essencial, o presidente da República desseculariza o Estado. E isso não é constitucional. Nem preciso entrar nos argumentos relativos ao estado de emergência sanitário, às recomendações da OMS e quejandos.
Mais: não é Cristão. Há a Cidade de Deus. E há a dos homens. Não confundamo-las, pois.
Por que no Brasil as coisas têm de ser assim? Estamos em estado de emergência votado em tempo recorde pelo Senado. Corremos perigo. Não devemos nos aglomerar. E o Presidente, pressionado por Igrejas (e existem mais de 1.000 registradas no país e quem sabe quantas dezenas de milhares de espaços físicos) permite as reuniões religiosas, porque, sem qualquer fundamento legal-constitucional, decretou que são atividades ou serviços essenciais.