Por Lenio Luiz Streck
Alguns professores de direito vêm mostrando preocupação com o excesso de rigor que estaria havendo para os atos do dia 8 de janeiro. Muitos dos juristas exigem, em contundentes artigos em jornais, “serenidade” e “desideologização”. Tudo indica que está começando, com isso, uma espécie de fase dois do processo de demonização do Supremo Tribunal Federal, por meio de uma estranha aliança entre os detratores do dia-sim-dia-também (são os que, à direita e à esquerda, fazem da crítica ao STF o seu esporte preferido), já tradicionais, e os críticos ad hoc que defendem um tipo de modelo, digamos assim, sendo eufemista, bem à direita, dizendo que há uma espécie de ditadura do judiciário.
Nessa estratégia, o primeiro passo é chamar os atos golpistas de vandalismo, camuflando a linguagem. O segundo passo é começar discussões com contundentes críticas aos “tresloucados atos” (sic), para, depois, acrescentar, sutilmente, os tradicionais “mas”, “veja bem”, “temos de ter serenidade”. Ora, o “mas” é adversativo. Pode anular o que se disse antes. Como dizia o personagem Ben Stark, em Games of Trones, tudo que vem antes do “mas” não tem valor.
Pior: nesse “mas” cabe tudo. Por exemplo, dizer que “foi ato tresloucado”, “mas” essa gente (tresloucada) desarmada é incapaz de dar golpe. Pronto. E encerrar sobranceiramente: “não vamos ideologizar”.
Trata-se do mascaramento dos atos golpistas. O drible da vaca na violência institucional. O truque hermenêutico é bem simples. Comentários professorais, traçando premissas indiscutíveis como “democracia é a vontade da maioria”, “liberdade de expressão é sagrada”.
Quem contestaria as premissas? Aplicando o modus Tollens, premissas verdadeiras patrocinam respostas verdadeiras. Sempre.
O problema são os fatos. Hoje é consenso que, por pouco, muito pouco, não houve golpe. Então, quem diz que “os atos tresloucados” foram apenas isso ignora todo o entorno, o conjunto da obra.
Essas pessoas que (i) invadiram os prédios, (ii) depredaram, (iii) fecharam estradas, (iv) ameaçaram ministros, (v) acamparam à frente dos quartéis, (vi) incendiaram carros e ônibus nas ruas de Brasília, (v) invadiram delegacia, (vi) colocaram bombas, todas elas acreditaram na tese da intervenção dos militares — tese, aliás, vendida por um grupo de lidadores do direito para a choldra que espalhou o terror. Aliás, essa tese, vendida no varejo e atacado, era “desideologizada”? Pois é. “Não vamos ideologizar a discussão”…!
No fundo, quem hoje minimiza os atos e os chama de “apenas gestos tresloucados de jovens e velhos” (e velhinhas, acrescento) está dizendo que havia uma espécie de “direito fundamental ao golpismo”, como, aliás, disse uma deputada em rede nacional e decidiu um juiz de Minas Gerais (que foi suspenso de suas funções).
Pelo andar da carruagem, em pouco tempo certos lidadores do direito defenderão o “legitimo interesse em invadir o parlamento, o Supremo Tribunal e o Palácio presidencial portando paus, pedras, facas, aríetes, machados, granadas e quejandos”. Afinal, eram apenas jovens e velhos descontentes.
E já está aí o discurso posto: agora, presos, acusados de tentativa de golpe, os “jovens e velhos” estão sendo injustiçados. Estão em campos de concentração, berram outros. Digo eu, com toda a serenidade — afinal, sou garantista da cepa porque exijo, por óbvio, o devido processo legal: não apenas os “velhos e jovens” golpistas-depredadores são criminosos que devem responder pelo crime de tentativa de golpe de Estado (além de outros delitos), e, sim, muito mais gente. Muito mais.
Porque a choldra não agiu só. Alguém (i) mandou, (ii) financiou e (iii) planejou. O conjunto da obra mostra bem isso, com (i) convenientes férias de secretário de segurança, (ii) folga de comandante das forças de segurança, (iii) leniência policial, (iv) participação de escalões militares e (v) declarações “ambíguas” do alto escalão bolsonarista (não esqueçamos do “ladrão não sobe a rampa”). Até (vi) rascunho de decreto de golpe havia. Por que será?
De todo modo, vou seguir o conselho de um velho jurista que, ao minimizar os atos golpistas e dizer que, (“gente desarmada não dá golpe”), sugeriu ler os clássicos. Bom, basta um, que releio: Thomas Hobbes. O pai da modernidade.
O cara da “civilização contra a barbárie”. Gosto dos clássicos!
Texto publicado originalmente no ConJur