“Há um verdadeiro problema de ataque à soberania”, afirma Matthieu Aron, jornalista francês, em entrevista exclusiva ao DCM. Ele se refere à conduta do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que por meio de uma lei anticorrupção, condenou as maiores empresas da Europa a pagar multas bilionárias. Um dos casos mais emblemáticos é contado no livro do qual é co-autor, “Arapuca Estadunidense”, lançado no Brasil pela Kotter Editorial.
A obra conta a história de Frédéric Pierucci, então um alto executivo da empresa francesa Alstom. De passagem pelos Estados Unidos, ele foi preso pelo FBI e enviado para uma cadeia de segurança máxima, onde permaneceu por mais de um ano por “saber” de uma transação de propina paga pela companhia na Indonésia.
“Ele nunca embolsou um centavo – nunca! -, o que inclusive os procuradores americanos reconheciam. Eles o acusavam apenas de saber”, diz Aron. A estratégia, conta, era derrubar o CEO da empresa francesa, Patrick Kron.
“O CEO, ao mesmo tempo em que foi ameaçado pela justiça americana, aceitou vender uma parte de sua empresa – e é aí que a história se torna particularmente interessante -, todo o setor de energia, ao seu principal concorrente americano”.
Não há apenas semelhanças com a Operação Lava Jato. Pressões dos procuradores, funcionários públicos migrando para o setor privado em flagrante conflito de interesse, países sendo obrigados a mudar a legislação nacional e colaborar com os Estados Unidos, soberanias violadas no “combate à corrupção”. Um “modus operandi” mundial da justiça americana, que por enquanto deu certo do seu ponto de vista.
“26 empresas pagaram multas de mais de 100 milhões de dólares ao tesouro americano. Quatorze são europeias. Cinco são francesas. Somente cinco são americanas”, diz a obra. Por “violar” o embargo contra Cuba e o Irã, só o banco francês BNP Paribas foi condenado a pagar quase 9 bilhões de euros aos EUA.
“Não é normal que o Estado francês tenha aceitado ser pisado dessa forma por anos e que para não ser mais pisado ele decida instaurar processos que não abriria antes”, afirma Aron.
O repórter da revista francesa L’Obs conta como os países europeus têm reagido e aponta novas estratégias dos Estados Unidos. “Hoje, eles têm outros dispositivos extraterritoriais para se intrometer nas questões dos países”, relata.
DCM: Em linhas gerais, o que vocês contam no livro “Arapuca Estadunidense”?
Matthieu Aron: É primeiramente a história de um homem, que se chama Frédéric Pierucci, executivo de alto nível de uma empresa francesa, uma multinacional que se chama Alstom.
Na época, a Alstom era uma empresa que tinha duas atividades principais: a energia, pela fabricação de turbinas que equipavam centrais de produção de eletricidade, em particular as centrais nucleares, mas não apenas; a atividade de transportes, com a fabricação de trilhos de metrô ou trem, como o trem de alta velocidade francês.
Frédéric Pierucci trabalhava nesta empresa, havia trabalhado muito no exterior. Na época dos fatos, ele estava em Cingapura. Numa viagem de negócios aos Estados Unidos, ele foi preso pelo FBI, para a sua surpresa, ao sair do avião, em Nova Iorque.
No início, ele não havia compreendido o que estava acontecendo. Quando o FBI começou a interrogá-lo e um procurador norte-americano o interpelou, ele compreendeu que se tratava de um velho caso da Alstom, de dez anos antes, no qual ele havia sido um dos atores de um acordo comercial, uma venda que a Alstom havia feito na época na Indonésia.
Nessa venda, houve pagamento de propina, portanto, um ato de corrupção. Frédéric Pierucci ficou sabendo deste ato de corrupção, mas não era ele o autor principal. Ele era um dos 50 executivos da Alstom na época que foram informados de que, para obter aquele mercado indonésio, houve pagamento de propina.
Os americanos se interessaram por ele, que subiu na hierarquia da Alstom. Os americanos o interpelaram. Prenderam-no por 14 meses. Ele foi o bode expiatório desse caso, porque o que os americanos visavam naquele momento era o cabeça da Alstom, que se chamava Patrick Kron. Os americanos queriam derrubar o CEO da Alstom, na verdade.
O que eu percebi nesse momento, como jornalista francês, havia uns dez anos, os americanos haviam considerado que sua lei de luta contra a corrupção tinham um alcance extraterritorial, isto é, que ela se aplicava aos Estados Unidos e ao resto do mundo. E que, através dessa lei anticorrupção que os americanos transformaram em internacional, eles poderiam na realidade processar empresas estrangeiras em todo o planeta por um mínimo elo possível com os Estados Unidos, por exemplo, pelo fato de que a transação foi realizada em dólar ou que as transações tivessem utilizado uma caixa de e-mails do tipo “gmail”, por exemplo. Isso bastava para estabelecer uma ligação com os Estados Unidos para processar.
Então os americanos processaram uma empresa francesa por uma transação que ela fez com a Indonésia dez anos depois. Como eles fizeram? Eles abriram uma investigação e pediram aos franceses para colaborar, o que Pierucci não sabia naquele momento, pois estava num nível acima dele (na hierarquia da empresa).
O francês, patrão da empresa, Patrick Kron, disse que colaboraria, sem colaborar realmente. Os americanos perderam a paciência e foi assim que eles prenderam Frédéric Pierucci para pressionar o CEO.
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O CEO, ao mesmo tempo em que foi ameaçado pela justiça americana, aceitou vender uma parte de sua empresa – e é aí que a história se torna particularmente interessante -, todo o setor de energia, ao seu principal concorrente americano, a General Electric. No final das contas, uma grande empresa francesa passou para o comando americano, uma parte ao menos, numa atividade estratégica que a Alstom fornecia, e que agora é a General Electric, a fabricação de turbinas que equipa todo o setor nuclear francês.
DCM: Sob a perspectiva brasileira, pensa-se principalmente no ex-juiz Sergio Moro, que foi trabalhar na empresa americana Alvarez & Marsal, constituída por diversos ex-funcionários de governos do mundo, no que se chama de “porta giratória” (passagem do função pública para o setor privado sem quarentena). Você observou esse fenômeno no caso Alstom?
Sim e não. Eu não constatei isso em relação à justiça americana, então eu sou incapaz de lhe responder. Por outro lado, em relação à França, o que se constatou é que há uma agência estatal francesa, chamada Agência de Participações do Estado (Agence de participations de l’Etat).
Trata-se de uma agência voltada para a gestão dos bens do Estado nas grandes empresas francesas, pois o Estado pode ser acionista nas grandes empresas francesas. Quando houve a venda dessa parte da Alstom, do setor de energia, à General Electric, o dossiê foi instruído pela política, mas em particular pela pessoa que dirigia aquela agência estatal, que se chama (David) Azéma, que era portanto um funcionário público francês de alto nível.
Na sequência da venda da Alstom à General Electric, Azéma passou para o setor privado. Ele foi para um banco que, curiosamente, estava associado ao caso Alstom-General Electric [trata-se do Bank of America – Merril Lynch, que aconselhou Patrick Kron na venda do setor de energia da Alstom à GE].
Eu não concluo nada, apenas constato. Mas o caso Alstom não é o que esclarece melhor esse tipo de fenômeno.
DCM: Onde fica a sede desse banco, na França ou nos Estados Unidos?
É um banco americano. Existe um órgão de deontologia, inclusive, na França, que dá seu parecer sobre funcionários públicos irem trabalhar no setor privado. E nesse caso, me parece que a comissão havia dado um parecer negativo. Ele (Patrick Kron) foi para uma filial, mas ela pertencia ao banco (americano).
DCM: O procurador do caso Alstom, Daniel Kahn, afirmou em entrevista a um jornal do Brasil que o contato informal com procuradores brasileiros da Operação Lava Jato agilizava processos. O que isso revela de seu modo de agir?
Eu me debrucei sobre os casos americano e francês, não acompanhei o caso brasileiro.
DCM: Você observou esse tipo de interação entre procuradores?
Até onde eu sei, não houve relação dos procuradores americanos com os procuradores franceses. Não aconteceu assim. Há grandes casos internacionais em que os procuradores cooperam, não no caso Alstom. Neste, houve dois procuradores que visaram especificamente a França. Eles negociaram diretamente com a empresa francesa, porque é o “modus operandi” nos Estados Unidos.
Há toda uma nebulosa em que os procuradores informam uma empresa que eles investigam que ela está sob investigação – é muito curioso esse procedimento americano – e lhe pedem para colaborar com a justiça americana.
Eles pedem à pessoa da qual suspeitam para trazer provas de sua culpabilidade e se as aceitam, seu engajamento a não reincidir e aplicam uma multa. Não tem nada a ver com a maneira como trabalham os procuradores franceses.
Até onde sei, os procuradores americanos não entraram em contato com os procuradores franceses, mas com a empresa Alstom.
DCM: A maneira como o Departamento de Justiça americano conduziu esse processo atentou contra a soberania francesa?
Podemos considerar que sim. É a questão que se coloca para toda justiça extraterritorial. Os americanos estimam que um certo número de países, inclusive a França, nessa época, hoje mudou um pouco, não luta o suficiente contra a corrupção.
A partir desse momento, os americanos consideram que práticas da França e desses países, quase todos os países europeus acabaram sendo alvo dessa história… Todos os grandes países europeus tiveram empresas que foram condenadas (pelo Departamento de Justiça americano).
Os americanos consideram que há uma forma de concorrência desleal porque uma empresa francesa, uma empresa alemã, uma empresa norueguesa, uma empresa espanhola, para usar exemplos europeus, conquista um mercado no mundo utilizando propinas, uma concorrência desleal porque contra as empresas americanas. A partir daí eles consideram que há uma possibilidade para eles de agir.
Ao mesmo tempo, o que a justiça americana tem a ver com uma transação entre uma empresa francesa e uma empresa indonésia? “A priori”, absolutamente nada. Então, sim. Há um problema de ataque à soberania. Há um verdadeiro problema de ataque à soberania, eu concordo com você.
DCM: No caso do Brasil, acusados afirmaram ter sofrido pressão para construir uma delação contra o PT ou uma narrativa esperada pelos procuradores. Você observou algo semelhante no caso Alstom?
A justiça funciona de modo diferente dependendo do país onde nos encontramos. A justiça americana é uma justiça do acordo. É uma justiça de negociação. Se estiver no início da investigação, ela pode propor a uma pessoa uma forma de imunidade se ela aceitar denunciar outras pessoas.
Se a investigação estiver mais avançada, como no caso de Frédéric Pierucci, pode propor-lhe de reconhecer sua culpa e, em troca, reduzir sua pena. Para que sua pena seja reduzida, é preciso que ele reconheça sua culpa e que ele aceite ao mesmo tempo colaborar com as autoridades americanas, o que quer dizer responder a perguntas, se ele denunciar práticas que ocorreram em sua empresa ou (outros) problemas.
Frédéric Pierucci não aceitou reconhecer sua culpa por um certo tempo. Depois, ele aceitou reconhecê-la. E depois se tornou uma forma de relação de forças entre os procuradores americanos e esse senhor Pierucci, que se encontrava numa prisão e teoricamente corria o risco de ser condenado a dezenas de anos de prisão, o que é incrível.
Ele nunca embolsou um centavo, o que inclusive os procuradores americanos reconheciam. Eles o acusavam apenas de saber. E é uma forma de pressão que eles exercem sobre a pessoa, isso é incontestável. Incontestável, você tem razão.
DCM: Esse modo de agir da justiça americana constitui uma ameaça à soberania dos países do mundo inteiro?
Essa pergunta é também uma verdadeira questão. Em relação à França e em geral à Europa, a partir dos anos 2000, houve grandes empresas europeias que foram condenadas uma após a outra pela justiça americana a pagar multas de centenas de milhões e até milhares de euros no caso dos bancos. Empresas totalmente desestabilizadas.
Isso conduziu os governos europeus a dizer aos americanos, é a resposta que puderam dar: “Vocês dizem que não tomamos as medidas suficientes, então o que vamos fazer é adotar nos nossos próprios países uma legislação mais firme contra a corrupção, vamos engajar os processos nos mesmos, ingleses, alemães, italianos ou franceses, e assim, vocês americanos, não terão mais de nos processar. Vocês não terão mais de ameaçar nossa soberania”.
Foi o que fez a França. Ela adotou uma linha muito mais firme contra a corrupção, particularmente depois do caso Alstom. Há dispositivos novos, adotados há cerca de dois anos pelo parlamento francês, que pode dizer: “veja, nós processamos”.
Depois desse caso, a justiça americana continuou ou já havia iniciado um processo. Ele havia conseguido condenar um grande banco francês, o BNP, ao mesmo tempo que a Alstom, a uma multa colossal de (quase) 9 bilhões de euros, e a Société Générale, outro grande banco.
No final das contas, houve um acordo quando a Société Générale foi condenada e as justiças americana e francesa dividiram a multa. Isso não impediu que a maior parte ficasse com a justiça americana. A justiça francesa, o Estado francês, recolheu uma parte menor da multa. Isso foi o que aconteceu nesses últimos três anos.
DCM: Seu livro, publicado em 2019 (na França), explica que as empresas europeias foram multadas em bilhões de euros pela justiça americana. Você está dizendo que desde então a situação não melhorou?
Não é exatamente isso. No caso da França, ela adotou uma lei anticorrupção interna mais severa do que antes. Agora, os juízes franceses dizem aos juízes americanos: “parem de abrir processos, trabalhem mais conosco e vamos conduzir investigações juntos, nós vamos fazer uma parte da investigação e vocês a outra, no final condenaremos uma empresa se ela efetivamente cometeu corrupção ou outros fatos repreensíveis e vamos dividir a multa”.
Podemos considerar um progresso em relação à soberania do Estado francês, mas o que não é normal é que o Estado francês tenha aceitado ser pisado dessa forma por anos e que para não ser mais pisado, ele decida instaurar processos que não abriria antes. Então, podemos dizer que é um ataque à soberania e que os processos que ele conduz, ele o faz em colaboração com os Estados Unidos.
DCM: Isso quer dizer então que os Estados Unidos conseguiram um meio legal do ponto de vista francês de interferir nos processos do país?
Pode ser visto dessa forma. De todo modo, há esse dispositivo anticorrupção, o “Foreign Corrupt (Practices) Act”, que foi muito útil aos americanos. Hoje, eles têm outros dispositivos extraterritoriais para se intrometer nas questões dos países.
Eles haviam utilizado o Patriot Act para lutar contra o terrorismo, mas ele lhes permitiu ver um pouco do que acontecia no mundo inteiro. Com o FCPA, eles atacaram a corrupção. É certo combater a corrupção. Ninguém pode dizer o contrário, mas isso lhes permitiu intrometer-se em casos de corrupção de grandes empresas internacionais.
Hoje, com o CLOUD Act (Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act), que consiste em obter os dados das empresas de nuvem, cujas maiores empresas são americanas, eles vão ver o que quiserem. É preciso dizer a verdade. Eles têm a capacidade de ver o que acontece quase no mundo inteiro com seus dispositivos extraterritoriais, que são incríveis. É o grande problema da soberania digital, certamente mais vasto do que a arma que eles utilizaram contra a Alstom.
DCM: Isso significa que o mundo está ainda mais vulnerável ao Departamento de Justiça americano?
O mundo, não. Há uma forma de correlação de forças. Em relação à economia, há uma correlação de forças para os produtos americanos que faz com que o mais forte, os Estados Unidos, dite sua lei sobre a maneira como os negócios devem ser conduzidos.
DCM: O que os países podem fazer para se proteger dessa forma de ingerência americana?
O que eles fizeram é adaptar sua própria legislação para poder dizer aos Estados Unidos: “parem de vir investigar em nosso país, nós vamos fazê-lo”. Por enquanto, é a única arma que eles encontraram.
Outra pista é defendida por um ex-primeiro-ministro francês chamado Bernard Cazeneuve, que hoje é advogado e reivindica a existência de um Ministério Público europeu.
Esse Ministério Público europeu existe e começa a ser implementado. O problema da Europa é que tudo é muito lento e pode não funcionar como queremos. Mas num mundo digamos ideal, no dia em que a Europa tiver um Ministério Público forte para julgar esse tipo de caso, considerando a potência da Europa quando todos os países estão juntos, aí sim ela poderá lutar com paridade contra o Departamento de Justiça americano.
O que os especialistas dizem é que, enquanto não houver um Ministério Público europeu, vai se fazer o que der em relação a essa ingerência.