Aviltamento dos símbolos nacionais e o terrorismo semântico e jurídico. Por Fernando Fernandes

Atualizado em 22 de fevereiro de 2023 às 1:00
Terroristas sobem rampa do Congresso Nacional. Foto: Reprodução

Por Fernando Augusto Fernandes

O país viu estupefato o aviltamento dos símbolos nacionais do poder democrático. Na cidade cuja arquitetura – marcada pelos traços de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Le Corbusier – foi feita para ser aberta ao público, carregada de vidros e curvas. As imagens de pichação do monumento de Alfredo Ceschiatti sobre a influência grega, símbolo da Justiça brasileira, os originais da Constituição sendo rasgados, o brasão da República arrancado e colocado na praça, enquanto do outro lado uma tela de Di Cavalcanti foi esfaqueada, colocam a dimensão simbólica e prática da violência dos atos terroristas.

Importante voltar a alguns temas jurídicos e terminológicos. O primeiro é sobre terrorismo. Podemos classificar os atos como terroristas? Primeiramente é necessário separar a tipicidade penal dos fatos da vida. A palavra terrorista foi usada por anos contra os movimentos de resistência armados ao Golpe de 64, e mesmo movimentos de esquerda pelo mundo. Mas é também aplicada ao terrorismo de Estado, como quando nos referimos ao plano de militares quanto à bomba do Rio Centro e o plano de explosão do gasômetro do Rio de Janeiro, para impedir a abertura. E estamos diante de atos terroristas, que visam criar um clima de terror, agredindo pessoas e depredando patrimônio.

Juridicamente, no entanto, não estamos diante de atos terroristas por um único motivo. A Lei 13.260/16 restringiu o terrorismo a específicos fins de agir, que foram xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Por isso, em que pese praticados com “finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”, as razões foram políticas.

Assim, a configuração do crime está nos “Crimes contra as Instituições Democráticas” dos artigos 359 L e M do Código Penal, introduzidos pela Lei 14.197/2021, acrescidos depois do desaparecimento da Lei de Segurança Nacional por decisão do Supremo Tribunal. Os tipos merecem ser transcritos, não como nota de rodapé, mas como parte integrante do texto:

Abolição violenta do Estado Democrático de Direito

“Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.”

Golpe de Estado

“Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.”

Tenho defendido a necessidade de revisão de leis desde o assassinato do guarda civil Marcelo Arruda (Assassinato por ódio de um petista), além da inclusão nos motivos políticos, mas se verifica que temos legislação que permite a punição.

Outro ponto relevante para reafirmar e esclarecer são as consequências jurídicas das omissões. Esclareci isso em outro texto aqui na ConJur (Terrorismo por omissão e o artigo 359-L do CP).

O que expliquei naquele texto é que todos os crimes podem ser cometidos por ação ou omissão. A omissão pode, quando dolosa, substituir a ação. O exemplo clássico é do sujeito que não joga a boia para seu inimigo que está morrendo afogado. Nesse caso estamos diante de homicídio e não de omissão de socorro.

Juarez Tavares ensina em seu livro Teoria dos Crimes Omissivos que a responsabilidade por crimes omissivos deveria ser limitada àqueles que têm como obrigação a proteção da vida, chamados de agentes garantidores, como pai, tutor, médico e, nesse caso, analisado os agentes do estado. As autoridades são agentes garantidores e por isso têm o dever de agir e por isso são responsáveis em coautoria.

Um outro conceito relevante é do dolo eventual. Esse dolo ocorre quando não se tem dolo, vontade direta de algo, mas se admite a consequência. Outro exemplo clássico é do sujeito que coloca uma bomba para abrir um cofre, mas admite a consequência a morte de pessoas que estão no cinema próximo. Apesar de não querer matar o sujeito admite a consequência da morte. A acusação será de homicídio doloso.

Para ser mais claro, o governador e o secretário do Distrito Federal podem ser acusados de coautoria dos atos, assim como os policiais que não agiram. Nesse ponto é relevante a mensagem que vazou do delegado Fernando Oliveira, que ocupava o cargo de secretário interino e que dizia ao governador que estava tudo pacífico “até agora”. Essa expressão mostra a clara noção da possibilidade das consequências que vimos, e mesmo assim os policiais escoltaram os terroristas até as portas do Supremo e as rampas do Congresso e do Palácio do governo.

Vídeos foram divulgados de pessoas agradecendo a ajuda via Pix e depósitos, e por evidente a tentativa de golpe não é o único crime. Temos ainda o crime de organização criminosa, que é reunir quatro ou mais pessoas para cometimento de crimes cujas penas sejam maiores que quatro anos (art. 1º da Lei 12.850/13). Há também o financiamento à organização criminosa (artigo 2º, pena de 3 a 8 anos).

Além do crime de tentativa de golpe, a acusação pode vir acompanhada, em cada caso, de diversas imputações conjuntas, como a agressão ao cavalo de um policial (artigo 32, Lei 9.605/85), a lesão corporal ao próprio policial (artigo 129 CP), além  do crime de dano (artigo 163 CP). Neste último, a pena a base de 1 a 6 meses é agravada por ter sido cometido com (I) violência e (III) contra o patrimônio da União, sendo majorada para 6 meses a 3 anos.

As ações penais irão acompanhar medidas cautelares de bloqueio, sequestro de bens que poderão ao final ressarcir danos causados, desde o agente direto até os financiadores, que certamente ainda responderão as ações civis públicas decorrentes de seus atos.

Dessas ações, algumas serão de imediato, e outras, no decorrer do tempo, em razão do longo prazo prescricional cível e criminal.

Mais uma vez, acentuo que os crimes contra o Estado de Direito são crimes políticos e, por isso, na forma do artigo 102, II, “b” da Constituição Federal a denúncia é em primeira instância federal, com recurso direto ao STF.

Não podemos esquecer os militares. Não poderia deixar de apontar que já é hora de declarar a inconstitucionalidade da Lei 13.491/17 que alterou a competência de crimes de militares contra civil. Agora em especial temos que tratar daqueles que cometeram os crimes contra o Estado Democrático. Devem responder perante a Justiça Federal comum. E é o momento de o Supremo ser instado a declarar inconstitucional essa alteração, assim como o Congresso, a fim de que faça as alterações para retornar a competência para a Justiça comum. Até ir mais longe, e extinguir a Justiça Militar em tempos de paz, para essa se integrar à primeira instância como integrante dos Tribunais de Justiça, e a competência do recurso passar ao Superior Tribunal de Justiça. O custo do STM é injustificável pelo volume de processos.

De toda forma, sabendo que os militares estão submetidos ao presidente da República e ao ministro da Defesa, temos uma lista de crimes possíveis no Código Penal Militar. Para aqueles que participaram e que desrespeitarem as ordens superiores, há desde motim (artigo 149, pena de 4 a 8 anos), organização de grupo para prática de violência (artigo 150 [1]) e conspiração (artigo 152), até os mais leves, como insubordinação (artigo 163, com pena de 1 a 2 anos)

O Estado de Direito é mantido à medida que as consequências jurídicas, prisões, responsabilidades ocorrem. Assim, certamente, além das consequências imediatas, o povo brasileiro espera que, com o devido processo legal, as instituições funcionem, além da necessidade de decisões do Supremo, e que sejam todos denunciados, condenados e continuem presos os que já foram, e outros sejam.

Publicado originalmente em “ConJur”

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