“Bandidos, corruptos e vadios”: Tiradentes e o Brasil segundo o filme “Joaquim”. Por Marcos Nunes

Atualizado em 24 de abril de 2017 às 21:35

A frase emblemática é dita após mais ou menos uma hora de projeção de “Joaquim”, o novo filme acerca de Tiradentes, ou melhor, Joaquim José da Silva Xavier: “Nessa terra só tem bandido, corrupto ou vadio”, a que seu interlocutor, Tomás Antonio Gonzaga, o Poeta, responde algo assim “Isso é o que os portugueses dizem sobre nós, quando na verdade são eles os bandidos, corruptos e vadios”.

Esse momento sintetiza o Brasil naquele momento e o que viria, o país em que vivemos: a autoproclamada elite insiste em declarar que o pior da nação, a razão dela não se desenvolver, é seu povo, mas o fato é que essas “elites” lucram com o subdesenvolvimento, e continuam a alimentar as metrópoles, na época de Tiradentes, mercantilistas, hoje imperialistas, a nos condenar ao mercado de matérias-primas, devolvidas na forma de produtos industrializados, mantendo-nos assim em eterna dependência e dívida.

Este filme ora em cartaz, “Joaquim”, retrabalha a figura histórica de Tiradentes nos colocando diante de sua origem, sua função de alferes dedicado ao combate do tráfico ilegal de ouro, objetivando tão somente o próprio enriquecimento e promoção à condição de tenente, sem perceber muito bem que, dada sua condição obscura, ainda que portuguesa, privilégios e promoções não lhes eram devidos, mas apenas, “meritocraticamente”, àqueles bem-nascidos e relacionados com as esferas de poder colonial.

Aos trancos e barrancos, Joaquim faz sua formação, instruído pelo Poeta, enganando-se com as virtude da Revolução Norte-Americana, supondo que na “América” havia desde a independência local democracia, liberdade e direitos iguais para todos, passando a ser isso a razão de sua vida: o movimento pela independência do Brasil, a partir da Inconfidência Mineira que, ele percebe, é formada por conspiradores na verdade sem tanto interesse assim na redenção de um povo, e mais na constituição de um estado a favorecer seus interesses pessoais, sendo tais conspiradores integrantes das classes mais abastadas, a utilizá-lo como massa de manobra, tarefeiro, um homem tosco que pode levar a mensagem da independência às classes mais baixas, principalmente os pequenos agricultores, criadores de gado e mineradores do interior das Minas Gerais.

O final da história é conhecido, de maneira que o filme põe o final no começo, com Joaquim, em suas memórias póstumas, se reconhecendo como o herói com direito a feriado nacional, depois de ter sido o único inconfidente condenado à morte por enforcamento e ter seu corpo esquartejado distribuído pelas estradas em que transitava o ouro da colônia para a metrópole portuguesa.

No final do filme, vemos o primeiro encontro de Joaquim com a nata dos conspiradores, todos eles bem compostos, partilhando lauta refeição, rindo do semiselvagem revolucionário que manipulam.

Joaquim é o lado da história relacionado ao povo brasileiro: posto à margem, cumpridor de tarefas, humilhado e ofendido. Ironicamente, será ele posto no papel de herói da independência, em uma virada tipicamente demagógica das “elites” que o condenaram ao martírio, enquanto protegeram os demais integrantes da conspiração, todos bem postos no mundo colonial.

Joaquim é o grito de sedição revolucionária, que reconhece, na revolta dos negros, a legitimidade e a expressão mesma do povo brasileiro senhor de sua própria força.

Ver este filme, que conecta o passado e o presente, nos faz temer pelo futuro, principalmente porque, este último, já se revela na trama do Golpe de Estado que, depois de depor a presidente eleita, faz da História a disciplina de seu logro histórico: bandidos, corruptos e vadios se autoproclamam governantes de um país composto, segundo eles, por bandidos, corruptos e vadios – o povo, representado por Joaquim, ironicamente hoje “herói popular” por obra e graça do contínuo recontar da história por seus vencedores, a se presumirem eternamente nessa condição.

Condição que nós negamos, mas sem a força de conduzirmos nós mesmos a narrativa da história e a História mesma, com o agá maiúsculo que continua só devido à passagem dos “Grandes Personagens”, para lembrarmos a coleção criada e veiculada através das bancas de jornais na época da ditadura pós-64, essa que insiste em não morrer – talvez porque não foi enforcada e esquartejada como Tiradentes, esse herói roubado à nação e entregue ao povo como exemplo do que os conspiradores que proclamaram a república nunca foram: brasileiros.