Publicado originalmente no ConJur:
POR ROBERTO BATOCHIO
“Não há tirania mais cruel que aquela que se exerce à sombra das leis e com as cores da justiça.”
Montesquieu, em Do espírito das leis.
Uma das formas mais comuns de a tirania se manifestar no Estado “punitivista” é o encarceramento que desrespeita o princípio da presunção de inocência do cidadão investigado – sobretudo quando nem foi condenado e sequer denunciado se acha como autor de um suposto crime ainda em apuração. Como abundantes jabuticabeiras penais, essa forma de violência institucional está em permanente expansão na esfera do aparato da persecução penal do Brasil. Antes de se investigar, prende-se. Antes de se denunciar, prende-se. Antes de se condenar, prende-se. E a prisão, que deveria ser a resposta final imposta como punição ao réu induvidosamente culpado, passa a ser uma aleatória e opressiva antecipação do imprevisível desfecho do que seria o devido processo legal.
A volúpia, senão sanha, de aprisionamento que empolga certas autoridades, tradicional e abusivamente lançada no lombo de centenas de milhares de pessoas do povo, agora deu para estender-se a ex-presidentes da República cujo crime é figurar de depoimentos de terceiros (delatores premiados) em inconclusos inquéritos policiais ou outros feitos. Um foi detido recentemente por breve tempo e um segundo agora teve sua detenção pretendida pela Polícia Federal com a impenitente e jamais demonstrada alegação de que poderia obstruir investigações.
O aluvião de prisões cautelares avoluma-se hoje naquilo que Rui Barbosa chamou em 1920 de “praga pública”. O Brasil contava em agosto 812 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça. Nada menos que 337 mil desses reclusos são os chamados provisórios, é dizer, aguardam um julgamento em que, afinal, será decidido se ao rigor da lei merecem ou não ficar na cadeia. Pela lei, são presumidamente inocentes. Julgados, muitos serão absolvidos e libertados, ou seja, foram presos indevidamente, entre eles uma grande parcela de pretos e pobres, condições que em geral se conjugam na legião de despossuídos humilhados e ofendidos, vítimas de uma certa polícia que, quando não prende, aleija ou mata – considerando que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, 5.159 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais.
Apesar de escandalosos, os oceânicos números parecem não satisfazer à vontade incontrolável de aprisionamento que tem animado nossas autoridades. Os holofotes não chegam a eles. Maior repercussão tem essa cruzada quando lança sua rede de arrasto em figuras proeminentes da República. Foi por essa modalidade de extração midiática que o ex-presidente Michel Temer acabou detido em plena rua, em maio, em espetáculo cercado de câmeras, com base em delação premiada – aquela modalidade de investigação penal que se sustenta em um castelo de palavras a que falta o alicerce da prova e da verdade.
Talvez animados pelo sucesso dessa ação espetacular, por ordem de um desses juízes “celebridades”, embora instâncias superiores o tenham libertado imediatamente por reconhecer a ilegalidade do ato, nossos insaciáveis carcereiros acabam de dirigir sua sanha de aprisionamento, à ex-presidente Dilma Rousseff. Ao investigar supostos fatos ilícitos da campanha eleitoral de 2014, e novamente com base na verbiagem das delações premiadas, solicitaram ao Supremo Tribunal Federal a decretação da sua prisão processual, novamente recorrendo ao artificioso argumento de que ela, em liberdade, hipoteticamente poderia obstruir as investigações – já documentadas em um volume de 218 páginas. O sofisma processual é tamanho que, decorridos quase 2 mil dias dos fatos, que utilidade social ou mesmo investigativa se teria em a Polícia Federal manter a ex-presidente presa por exíguos cinco dias? A resposta é simples: a prisão humilha, desprestigia, fragiliza a dignidade do ser humano – e quanto mais famoso ele o é, mais empoderados se sentem os algozes. O pormenor esdrúxulo do episódio em si já de todo extravagante é que a ex-presidente sequer fora intimada a prestar esclarecimentos sobre os fatos em apuração, em suma, acerca das suspeitas que os policiais consideram tão comprometedoras a ponto de quererem levá-la odiosa e prematuramente ao cárcere.
Que sentido haveria em se aprisionar uma pessoa por fatos de cinco anos pretéritos, ainda em investigação, se é precisamente esta que deve determinar a existência material de crime e apontar seus autores, que serão devidamente processados e, se culpados e condenados, enfim punidos? O indisfarçável e único propósito dessa prisão é, sem dúvida, a volúpia de aprisionamento, que acomete determinados agentes da autoridade do Estado.
Desta vez, porém, falou mais alto o Direito e a arbitrariedade foi barrada, contando com o raro concurso do Ministério Público, também afeito às penas antecipadas, mas com sensibilidade para detectar e repelir a excrescência. Decisiva, no entanto, foi a ausência na cadeia de arbitrariedades do elemento nuclear desses atentados aos direitos fundamentais vigentes no Estado Democrático de Direito, ou seja, o juiz-justiceiro, que manda prender por dá cá essa palha. Relator da matéria no STF, o ministro Edson Fachin negou o pedido de prisão, com a lúcida observação de que “a pretensão de restrição da liberdade de locomoção dos investigados não se encontra provida da indicação de concretas condutas atentatórias às apurações que evidenciem a necessidade da medida extrema.” Ademais, com a diligência de julgador que deve zelar pela legalidade do processo, determinou que a ex-presidente fosse, apenas e enfim, intimada a depor.
Oxalá o sensato decisório deite raízes e iniba de vez a fúria de encarceramento indevido – espécime maligno da imposição legal da tirania de que falou o grande Montesquieu.