Por Manuel Domingos Neto
Bela tacada, a do Almirante! Num lance, virou celebridade e herói da esquerda.
Que importa ter ajudado a eleição do fascista? E que tenha subido sem máscaras em seu palanque no auge da epidemia! Ou que esteja envolto em trapalhadas que prejudiquem a saúde dos brasileiros!
Ninguém ligou para o fato de o médico-marinheiro, sem credenciais, ter disputado e arrematado uma vaga na agência que cuida vigilância sanitária. Na sabatina no Senado que aprovou seu nome, o candidato nada teve a dizer. Aliás, disse que adorava automobilismo e viagens às terras distantes.
Há um século a esquerda busca dissidentes militares. Na única tentativa de assalto ao poder, em 1935, confiou apenas na farda. Imaginou que bastava a legenda do Cavaleiro da Esperança.
Na luta pelo petróleo, agarrou-se aos confrontos no Clube Militar. Generais direitistas foram mitificados por defenderem a autonomia energética, como se isso não fosse o básico do básico da Defesa Nacional.
Lott, reacionário de quatro costados, entrou para a história em letras grandes por, ironicamente, quebrar a legalidade para preservar a Constituição. (Volta e meia me perguntam se não pode surgir outro Lott).
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Durante a ditadura instaurada em 1964, a esquerda auscultava ansiosa as dissidências da caserna. Vibrou com os rompantes de Hugo Abreu. No sufoco, qualquer reacionário fardado serviria.
João Goulart apostou exclusivamente em generais aclamados como sendo “do povo”. Impressionante a ignorância relativamente às corporações militares.
Em 1978, Euler Bentes Monteiro quebrou o galho da oposição consentida. O homem fora protegido do violento Albuquerque Lima e do assassino Ernesto Geisel, que lhe deu a quarta estrela. Com Paulo Brossard, apresentou-se ao colégio eleitoral para ser aplaudido por democratas e derrotado por João Figueiredo.
Com o golpe de 2016 em curso, congressistas de esquerda foram à tribuna para cumprimentar o general Villas Boas por seu aniversário. Que vergonha!
Eis que surge, no ambiente de terra arrasada, na desesperante tristeza coletiva, um marinheiro-médico desafiando o presidente da República.
Sua cartinha de impacto seguiu o molde consagrado por Benjamin Constant, o “fundador da República”: arguiu sua ascendência pobre, o selo de moralidade familiar, sua ascensão pelo mérito e defendeu seus subordinados institucionais. Falou grosso, demandando a retratação do fascista.
A consagração foi instantânea. A esquerda foi ao delírio. Outra tacada de efeito e o Almirante entrará na lista de candidatos à vice de Lula.
O marinheiro-médico integra o consórcio que jogou o país na lama. Agora, num beco sem saída, soma-se, glorificado às hostes democráticas.
Reza a cartilha do golpismo de última geração: criemos o problema para apresentarmos a solução. Ponha-se o bode na sala para sacá-lo gloriosamente, quando e se for o caso.
Sabendo que Bolsonaro está rumo à lata de lixo, os golpistas buscam desvencilhar suas imagens do estropício. O marinheiro-médico deu sua contribuição neste sentido. Ninguém sequer perguntou se age em acordo com seus superiores hierárquicos.
O Almirante atacou de policial bonzinho. É óbvio que ajuda a desmontar o mito fascista. Mas sua obra principal é a melhoria da imagem da farda e a construção de uma saída pela direita.
Precisamos de uma ampla frente para tirar o país do fosso, não de um arranjo nada conspícuo para continuar negando-lhe futuro promissor.
Os democratas deste país precisam conter sua avidez por salvadores fardados. Que parvoíce! Que vacilo!
Não teremos democracia assegurada enquanto não mudarmos a natureza intrínseca das corporações armadas de que dispomos. Estas fileiras são a garantia da continuidade do legado colonial e da subalternidade ao estrangeiro poderoso.