Os jogos de azar representam um problema de saúde pública global, segundo relatório da comissão de especialistas reunida pela revista científica The Lancet Public Health. Com base em uma meta-análise que revisou centenas de estudos, o documento estima que aproximadamente 448,7 milhões de adultos no mundo sofrem algum tipo de impacto negativo pelo envolvimento com apostas, um problema que vai além do diagnóstico formal de transtorno do jogo.
Entre essas pessoas, cerca de 80 milhões apresentam transtorno do jogo, caracterizado por apostas recorrentes que persistem, mesmo quando geram problemas de saúde, relacionamentos e finanças. Esses impactos, afirmam os especialistas, incluem crises de saúde física e mental, problemas nos relacionamentos, aumento do risco de suicídio e violência doméstica.
“Pelo menos seis outras pessoas, em média, são afetadas por cada indivíduo com transtorno do jogo”, aponta o relatório, que destaca que países de baixa e média renda têm pouca ou nenhuma base de dados sobre o problema, o que agrava a situação.
Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow e uma das autoras do relatório, destacou a necessidade de um sistema de monitoramento robusto e integrado. “Seria necessário um mecanismo para acessar dados da indústria de forma independente, sem que ela tenha influência sobre quais pesquisas são realizadas”, afirma Wardle. A ausência de dados, segundo a especialista, permite que a indústria explore essa lacuna para atrasar ações regulatórias.
O psiquiatra Rodrigo Machado, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, vê o relatório como um “alerta importante”, destacando que os danos das apostas não afetam apenas um pequeno grupo de pessoas. “O que o relatório fala é que toda a população do globo está suscetível e vulnerável aos danos do jogo de azar”, disse em entrevista ao Estadão.
Machado aponta que a dependência pode ser intensificada por jogos que permitem apostas rápidas e frequentes, o que aumenta a ativação do sistema de recompensa do cérebro e torna a experiência mais viciante. “A loteria tradicional tem seu risco, mas são os jogos de apostas rápidas que trazem hiperestimulação ao sistema de recompensa”, explicou.
O relatório também destaca que a digitalização da indústria de apostas mudou a dinâmica do jogo, trazendo um cassino virtual para o alcance de qualquer dispositivo móvel. As apostas online, disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, oferecem produtos projetados para serem rápidos e envolventes, o que aumenta o risco de dependência.
Segundo o estudo, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes que apostaram em jogos de cassino online no ano passado apresentaram transtorno do jogo.
Outro ponto alarmante é o engajamento dos jovens. Apesar de serem menores de idade, 17,9% dos adolescentes no mundo participaram de alguma forma de aposta nos últimos 12 meses, segundo o estudo.
Nos Estados Unidos, o transtorno do jogo afeta 4,7% dos meninos e 0,5% das meninas, enquanto na América do Norte essas taxas são ainda mais altas. O relatório alerta que a exposição constante a influenciadores e propagandas que normalizam as apostas para esse público é um dos principais fatores de risco.
A publicidade de apostas, amplamente difundida em plataformas de streaming e redes sociais, é um mecanismo poderoso para atrair jovens, especialmente em esportes, onde os limites entre entretenimento e publicidade não são bem determinados.
Influenciadores digitais e personalidades de esportes se tornaram peças-chave para atrair novos apostadores. “Um famoso jogador de futebol brasileiro fazia lives de apostas, apesar de a plataforma dizer que não permite essa atividade”, aponta o relatório, indicando que esses conteúdos estão cada vez mais acessíveis a crianças e adolescentes. O jogador no caso era Neymar, o principal rosto da plataforma Blaze.
O relatório pede aos governos que regulamentem e monitorem a indústria de apostas, que, segundo os cientistas, têm práticas de marketing agressivas e personalizadas para atrair consumidores.
Para Antonio Carlos Cruz Freire, da Universidade Federal da Bahia, as políticas de saúde pública precisam adotar uma abordagem preventiva mais ampla. Ele alerta para o princípio de precaução: “Transferir o ônus da prova para os proponentes de uma atividade e explorar alternativas antes de realizar ações prejudiciais”.
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