Em entrevista dominical à Folha de S.Paulo, Bia Dória, artista plástica, apresenta-se como futura primeira-dama magnânima da maior cidade da América Latina.
A missão redentora da nova Evita Perón (segundo auto-classificação) é alicerçada na proximidade com os agricultores que fornecem troncos de árvores para suas obras de arte, nas arrumadeiras, às quais ela “ensina o serviço”, e na mão-de-obra que, de um modo geral, a favela de Paraisópolis oferece a seu ateliê. Todas, “pessoas mais humildes”, que, segundo sua opinião, desejam afagos mínimos de gente (rica e branca) como ela, “um aperto de mão, um abraço”…
Sem qualquer cerimônia, Bia revela desconhecimento da cidade. Não sabe, por exemplo, para que serve o Minhocão e especula que ele seja “tipo um viaduto.” É certo que haverá leitores que a defenderão e afirmarão que isso tudo é bobagem, pois Bia é artista plástica, não entende de gestão pública e nem precisa entender. Ela é “apenas” a mulher do prefeito eleito. É verdade. Contudo, o que vem a seguir é preocupante, pois desnuda a mentalidade elitista e arbitrária da cidade como quintal da casa de um tipo de prefeito.
Indagada sobre a polêmica da construção do Parque Augusta, ela afirma que “vai falar com o João que lá precisa ter parque” porque quem tem filho no centro da cidade precisa de um lugar para passear com eles. Parece ou não tratar-se do quintal da casa, onde tudo se resolve pela vontade dos donos à mesa de jantar? E Bia? Não acham que ela encarna bem o papel de defensora dos fracos e oprimidos?
Tudo isso em detrimento de uma concepção de cidade como espaço público. De um planejamento urbano que deveria ser feito em diálogo com as pessoas que vivem na cidade, à revelia de decisões unilaterais para atender a pedidos e gostos da esposa do mandatário de plantão.
Bia Doria, como Marcela Temer, encarna a volta da benesse e do beija-mão à cena pública. Do favor aos desvalidos, da intervenção da alma caridosa da primeira-dama, a senhora da casa-grande, em nome dos “humildes e necessitados”.
Sobre as pessoas que contrata para trabalhar em sua casa, Bia nos conta que “ficaria feliz se chegasse uma arrumadeira já sabendo fazer as coisas. Pouquíssimas delas sabem, a não ser as que já passaram por várias casas, mas aí elas vêm cheias de manias.” Trata-se de uma reclamação recorrente das patroas brancas brasileiras que desqualificam as trabalhadoras domésticas e anos de experiência registrados em carteira de trabalho, ou mesmo de formação e prestação de serviços em agências profissionais.
Suas declarações soam naturais aos ouvidos de seus pares de classe, bem como a pessoas pobres e despolitizadas que caíram no conto do João trabalhador, inventado pelos marketeiros do marido.
Uma Evita Perón da Paulicéia é a contraparte natural de João Dória, o homem que alterou o conteúdo da carta-compromisso pela erradicação do trabalho escravo assinada pelos principais concorrentes a cargos majoritários. Entretanto, seu não-pensamento não pode ser minimizado ou ridicularizado como parte de uma temporada particular e autoral do FEBEAPA – Festival de Besteiras que Assola o País.
O não-pensamento em tela é a manifestação discursiva do lugar da mulher (branca) que retoma as funções auxiliares de garantia do bem-estar do marido e dos filhos, da organização da casa para recepções sociais e políticas, bem como a legitimação das bobagens que podem e devem ser ditas por um ser incapaz de pensar.
Esta incapacidade tem endereço certo. Ela cristaliza o lugar do favor, em prejuízo da ideia de direito. Joga purpurina na figura da primeira-dama filantrópica, a quem os que limpam a casa depois da festa poderão recorrer para amenizar o peso do chicote do patrão, quando necessário.
Afinal, a ideologia dos novos ocupantes do gabinete do prefeito considera que o pensamento é uma virtude masculina. Estrategicamente, no entanto, a mulher, esse ser não-pensante, exerce poder e opressão sobre os que, na opinião da casa-grande, nasceram para obedecer e receber favores, sem os quais não conseguiriam ascender à condição humana.
Em fim de contas, como Bia Doria candidamente nos alerta, é preciso diminuir as desigualdades porque o pessoal de Paraisópolis “respira o mesmo ar e sente frio como eles” (do Morumbi).