O jurista Eugênio Aragão foi ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff e coordenador jurídico da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. É mestre em Direito Internacional pela Universidade de Essex na Inglaterra.
Ao DCMTV, o jurista fez críticas às posturas do senador Sergio Moro após pedido de prisão da PGR, mas também comentou criticamente a viagem de Lula à China.
Para o ex-ministro, o presidente adotou uma postura que pode provocar o governo de Joe Biden nos EUA durante a Guerra da Ucrânia, alinhando o Brasil com a Rússia e a China em um conflito que pode não beneficiar o país.
Eugênio Aragão também criticou a ida de Lula à Huawei, gigante de tecnologia chinesa que enfrenta sanções do governo Biden.
Confira os principais trechos da conversa.
Brasil não tem “bala na agulha” para resolver a crise da Ucrânia
A crise da Ucrânia é um campo minado em que o Brasil, sozinho, não terá bala na agulha para resolver. A crise da Ucrânia é algo muito profundo que começa em 1991 com o processo do fim da União Soviética. O país foi um dos primeiros a se colocar pela dissolução da URSS.
Esse processo condiz com a história da Ucrânia e da própria União Soviética. Lembrando a vocês que esse país, entre 1918 e 1922, na guerra civil após a Revolução Russa, foi um espaço de muita resistência. De uma forte presença do chamado Exército Branco contra o Exército Vermelho.
Isso tinha muito a ver com a estrutura social da Ucrânia que é uma estrutura agrária. Com donos de terras poderosos. A Ucrânia era um celeiro da Rússia pré-revolucionária. E da União Soviética também. Essa postura de resistência ao socialismo na Ucrânia gerou uma reação bastante pesada do estalinismo lá.
Lembrando que [Nikita] Kruschev foi pintado como o bonzinho anti-Stalin e era comissário do líder soviético na Ucrânia. Como se fosse um governador. Foi ele o grande responsável pelos 10 milhões de mortes por inanição e desnutrição nas décadas de 20 e de 30.
Foi quando a União Soviética confiscou todos os trigos dos camponeses da Ucrânia. Foi uma massacre enorme, com crianças morrendo de fome. Foi um momento muito dramático da história soviética. Stalin pensava no todo. Não podia a Ucrânia ser o celeiro e não distribuir esses alimentos para o resto da União Soviética. Foram ações muito duras.
A resistência ucraniana à sovietização foi muito grande. Tanto é assim que os alemães na Operação Barbarossa que entraram na URSS foram recebidos na Ucrânia como libertadores. Foram as barbaridades produzidas pelos alemães e pelos ucranianos auxiliares da SS que fizeram a população mudar de lado na Segunda Guerra Mundial. No início, eles foram recebidos de braços abertos.
Stalin sabia muito bem e Kruschev também que a Ucrânia era um problema. Tanto que na Constituição soviética tanto Ucrânia quanto Bielorrússia tinham status especiais. As únicas repúblicas com representação nas Nações Unidas.
Para apaziguar a Ucrânia, Stalin resolveu tirar da Rússia e entregar para esses as regiões do Donbass, Luhansk, Donetsk, a região mais ao sul e a Criméia. São, todas elas, até Odessa, só dos russos. 90% da população é russa. Foi um presente dado para a Ucrânia pelo Stalin e pelo Kruschev.
Enquanto era União Soviética, era como dividir o estado do Mato Grosso e não tinha mais significado do que isso. O problema foi quando acabou. Como é que ficaria isso?
Houve um acordo para que Sebastopol permanecesse como porto armado da Rússia dentro da Criméia. Desde cedo, quando a Ucrânia ficou independente em 91, 92, os atores políticos cultivaram um nacionalismo ucraniano. Que era, sobretudo, anti-russo.
Até 2014, mesmo com esse nacionalismo, a relação entre Ucrânia e Rússia era compensadora, de cooperação.
Mudança na relação entre Ucrânia e Rússia
Quando chegamos em 2014 e começa um embate para a Ucrânia ter um status especial na União Europeia, nas entrelinhas na Otan, começam os confrontos com a Rússia.
Houve aquela pseudo-revolução do Euromaidan, a ultradireita ucraniana que ganhou foi de uma brutalidade com os russos. É só lembrar dos sindicalistas que foram queimados vivos. Dentro da sede do sindicato.
A Criméia não queria fazer parte dessa nova Ucrânia fascista. Os cidadãos da Criméia resolveram proclamar a sua própria independência. Fizeram em seguida um plebiscito para integrar a Rússia. O que fazia sentido se mais de 90% são de russos.
Em Luhansk e Donetsk a coisa era um pouco diferente. Lá é uma zona economicamente muito importante para a Ucrânia, de onde vem todo o minério de ferro e carvão, e começou a haver uma guerra. Entre as forças regulares da Ucrânia e os cidadãos de Donetsk que resolveram resistir.
Começou a “ucranização” da região. Proibiram eles de falarem russo, não podia mais ter jornal em russo, proibiram o russo como linguagem de ensino. E os russos começaram a se revoltar. E foi assim que começou a guerra civil.
Foi uma guerra em que as forças da Ucrânia massacraram os russos em Donetsk e de Luhansk. Os russos ficaram lá de certa forma sem saber o que fazer. Davam armas para a resistência porque aquela população estava sendo massacrada.
Houve tentativas depois com os acordos de Minsk 1 e Minsk 2 para que elas se tornassem repúblicas autônomas na Ucrânia com língua russa aceita. E isso estava no papel! E a França e a Alemanha se propuseram a serem fiadoras desse contrato. Mas eles não fizeram absolutamente nada.
Para depois a Merkel dizer que aquilo tudo era uma enrolação para ganhar tempo com os russos. Que nunca houve intenção de implementar aqueles acordos. Foi uma má-fé da União Europeia em relação à Rússia.
A Rússia estava preocupada porque a Ucrânia pedia auxílio aos europeus, que mandavam armas, deixando eles cada vez mais armados. Armas para combater a resistência no Donbass. Isso aconteceu até o momento que os Estados Unidos propuseram abertamente para a Ucrânia ingressar na Otan.
Ai a coisa acabou. A Rússia, em dezembro de 2021, mandou um memorando para a Otan em que dizia que as suas preocupações com segurança deveriam ser levadas em consideração. Isso deveria significar que a Ucrânia deveria ser um território neutralizado, para não tê-los avançando na fronteira russa. E que deveriam ser implementados os acordos de Minsk 1 e Minsk 2.
Os EUA mandaram um “eles que se danem”. E reafirmou a entrada da Ucrânia na Otan. A Rússia pensou que eles iriam avançar mais cedo ou mais tarde. Antes deles pensarem em me jantar, eu almoço eles, pensaram os russos.
A Rússia entrou na Ucrânia no modo da “auto-defesa preventiva” que os próprios americanos utilizaram no Afeganistão. A situação do Donbass com Kosovo é muito parecida, quando eles se diziam massacrados pelos sérvios – o que levou a Europa a intervir.
Não dá para reclamar da posição da Rússia no caso. Nem do ponto de vista do Direito internacional.
Aragão critica postura de Lula com China e Rússia
Bom, vamos ao ponto de vista brasileiro nesse conflito. Eu fico preocupado, porque eu me pergunto o que o Brasil pode ganhar nisso? O Brasil não tem poderio militar para se meter nessa briga.
O Brasil devia aproveitar a sua condição neutra. E tirar o melhor proveito de um e do outro. Afinal de contas, nós temos que nos lembrar que os Estados Unidos, com todos os defeitos que tem, com todo o seu imperialismo, teve uma postura interessante.
O fato é que o governo Biden calou a boca do Bolsonaro. Foi quem garantiu o reconhecimento das eleições. Deixou claro que era um fato consumado. E ajudou o Lula com isso.
Então eu não vejo utilidade em ficar fazendo cócegas nos Estados Unidos. Não acho que as medidas do governo Lula estejam erradas. A China e o Brasil devem negociar em moeda local. Ok. Estou achando certíssimo isso. Quem deu mal exemplo no dólar foram os americanos quando sequestraram as reservas russas.
Claro que os demais países têm receio de perder as suas reservas. Acho normal fazer isso. Agora não precisava ser proclamado isso como um desafio. Faz-se. Pura e simplesmente.
Da mesma forma que a visita à Huawei do Lula. Não acho que essa seja uma visita a ser feita por um presidente da República. Poderia ser feita por gente do segundo escalão do governo Lula. São coisas que eu não vejo utilidade.
Eu fico preocupado porque isso é retórico.
Isso não é real. Nós podemos tirar mais proveito da Europa e dos Estados Unidos como a gente pode tirar proveito da China. Desde que a gente se comporte como realmente neutro, que a gente se organize multilateralmente com outros países com mentalidade próxima a do Brasil para fazer uma frente contra a guerra.
Isso não tem que ser com o Brasil colocando a cabecinha para fora. Cabecinha para fora leva martelada. Não tem necessidade do Brasil fazer isso. Não acho que as medidas estejam erradas. A visita para a China foi vantajosa e Lula acertou em cheio.
Eu só acho que poderia ter menos retórica para desafiar os EUA. Não precisa falar, precisa fazer. Fazer mais e não falar.
No mais, a visita de Lula na China foi um sucesso. Tanto que os europeus e os americanos ficaram preocupados. O Brasil poderia usar esse sucesso para cobrar dos europeus.
O Lula foi convidado para o G7. Fica ruim ele ter essa atitude de confronto porque no G7 vai ter um climão. Isso é contraproducente. A gente tem que, como governo é diferente de ser oposição, pensar nas pautas que são mais importantes para nós.
Erradicação da fome, atender a necessidade de educação, a saúde, o meio ambiente. Para cumprir esses objetivos, a gente vai precisar se capitalizar lá fora. Se a gente puder tirar dos suecos, dos alemães, dos americanos, dos chineses, dos russos, tanto melhor.
Não vejo necessidade nesse momento de fazer desafio.
Lula tem uma grande qualidade em que às vezes ele derrapa. Lula é de uma espontaneidade muito grande. Não é uma pessoa conspiradora. Não é uma pessoa que faz as coisas pelas costas.
Lula é muito transparente. Só que o mundo que vivemos hoje é muito mais complexo do que foi o mundo no início do século. Estamos na beira de uma guerra global. Precisamos tomar muito cuidado e saber de que lado vamos estar.
Não acho que não devemos estar ao lado da Rússia ou da China, muito pelo contrário. Minha simpatia histórica está por esses dois países. Não vejo superioridade moral dos europeus ou dos americanos sobre os russos para dizer que os europeus estão certos e os russos errados.
Entendo perfeitamente as preocupações russas que são perfeitamente legítimas e quem quis essa guerra foram os americanos. Por várias razões, mas eles quiseram.
Essa guerra tem que continuar até a eleição do Biden, para eles. Se a guerra acaba antes com o congelamento do status quo, Joe Biden perde a reeleição. Vamos deixar isso bem claro.
Se a gente parar a guerra, como quer o Lula, o Biden perde. O Brasil tem condições de ser propositivo, mas precisa se amarrar a um grupo de países. Não vamos ser intermediários entre Ucrânia e Rússia. Não temos condições. Não há como.
É uma guerra fratricida. É uma briga de família. A Rússia nasceu em Kiev, primeira cidade russa, que hoje é capital da Ucrânia. Ali tem muita história. É um povo que viveu junto.
Não dá para vencer isso no grito. Mas achei bom o Lula ter falado que Taiwan é parte da China. É legítimo que seja considerado território chinês. Isso está certíssimo e isso era fundamental ser colocado.
A questão da moeda entre China e Brasil Lula foi bem, mas não precisava ser proclamado aos quatro cantos. Não precisava dessa intensidade. E a Huawei o Lula não precisava ter visitado para provocar o Biden. “Olha eu aqui na Huawei que você não gosta”.
E na volta ao Brasil, quem Lula recebe? O chanceler Sergey Larvrov! Realmente o timing não está ajudando muito.
Veja a entrevista na íntegra.