Publicado na ConJur
POR LENIO STRECK
A ConJur, sempre saltando na frente, entrevistou o procurador da República Celso Antônio Tres. Ele falou sobre o recente “enfrentamento” do consórcio de Curitiba contra as ordens da Procuradoria-Geral da República, lembrando que as operações se iniciaram no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), quando a Polícia Federal ganhou mais musculatura.
“Desde lá, são pautas permanentes. Geraram big data de informações. Sempre foram partilhadas pacificamente. A “lava jato” inventou direito autoral de operação. Acho que logo buscarão seus direitos no Ecad. Em suma, o parquet, os dados, apurações, são meus. Que faria de indevido o PGR Aras com os dados? Processaria inocentes? Pode, aí o temor, descobrir o limbo, submundo descortinado pelo Intercept. Pessoas que foram investigadas indevidamente, que nunca foram processadas. Que digam eles, objetivamente, no que Aras impede que investiguem ou denunciem.”
Isso já dá denota o imaginário que dominou — e domina — o universo da “lava jato” e da força-tarefa. Poderia parar por aqui. Claro que poderia fazer outras análises da entrevista de Tres. Porém, aqui está o busílis. E mostra o acerto da decisão de Aras em acessar os metadados (big data). Toffoli havia autorizado. Fachin desautorizou no dia 3 de agosto.
Mas, vejam e aqui vai o spoiler. A decisão de Fachin não discute se Aras pode/deve ou não acessar os dados. Apenas disse que não cabia Reclamação.
Como se sabe, o procurador Augusto Aras ajuizou reclamação no STF apontando que os procuradores das forças-tarefas têm resistido ao compartilhamento de informações e a supervisão. Tal resistência estaria em desacordo com postulado fixado pelo STF na ADPF 482: “as forças-tarefas funcionando no âmbito do Ministério Público Federal em feitos sobre fatos comuns a mais de uma instância do Poder Judiciário não podem ser compreendidas como órgãos estanques à margem de institucionalidade ministerial, que é uma e incindível”.
No início de julho, então, no recesso do Judiciário, o ministro Dias Toffoli acolheu pedido da PGR, entendendo que a medida garantiria não só a preservação da competência constitucional da Corte, como a investigação sob supervisão da autoridade competente.
No dia 3 último, o ministro Edson Fachin disse que a ADPF 482 (aqui) não alberga o pedido da reclamação de Aras. Para Fachin, a resistência e negativa de acesso de dados das forças-tarefas não se amolda perfeitamente ao que o STF já decidira.
Ou seja, o PGR, que detém parcela da soberania do Estado brasileiro, indicado pelo presidente e legitimado pelo Senado, não pode acessar dados que interessam à República. Criou-se um paradoxo: quero saber do que trata porque isso é uma questão de Accountability (prestação de contas), mas não posso chegar lá porque parece não haver remédio jurídico para tal, eis que a decisão do ministro Fachin deixou claro que não cabia reclamação. Registro: se estudarmos aquilo que é o cerne de um precedente (de uma tese ou julgado), teremos que sempre há uma holding. Examinando o julgado exsurgente da ADPF 482, fica nítida a impressão de que Toffoli está correto. Qual é o princípio que se retira da ADPF? Que as forças-tarefas não estão à margem da institucionalidade ministerial, porque o MP é uno e indivisível.
De todo modo, o ministro Fachin não ingressou no mérito. Fachin não diz se Aras deve ou ter acesso à base de dados. Aliás, poder-se-ia dizer que, ao assim decidir, pode-se retirar uma opinião em contrário, é dizer, ao impedir o acesso de Aras aos documentos o ministro está se imiscuindo em assunto da alçada estrita do Procurador-Geral da República. A ver.
Insisto: trata-se de um assunto que interessa à República. O Procurador-Geral deverá recorrer ou terá de encontrar outro caminho jurídico para fazer o que é de sua prerrogativa e, porque não dizer, de seu dever de Chefe do MP, porque ele deve Accountability à nação.
No frigir dos ovos, tem-se que Aras, quem simplesmente poderia ter requisitado o que tem de direito, foi ao STF, para não dizerem que estaria sendo autoritário. Havia resistência da força-tarefa. Quis que o STF o respaldasse. Obteve êxito. Mas, agora, soube-se, por decisão de Fachin, que o remédio era outro para essa tosse epistêmico-jurídica.
Qual seria, então, o remédio para permitir ao Procurador Geral fazer o que tem o direito e o dever de fazer? Eis a pergunta de um milhão de dólares: precisa autorização do STF para o Procurador-Geral, Chefe do Ministério Público, acessar os documentos esses? Será que o PGR terá de usar o remédio do Habeas Data? Seria bizarro, pois não?
O PGR, para cumprir o seu dever de prestar contas republicanamente — afinal, parece que há um bunker de segredos no big data do MPF, conforme expressão usada por Reinaldo Azevedo — teria que usar esse remédio? Quem seria o demandado? Ou cada cidadão teria que buscar acesso aos dados com habeas data individual?
A propósito: O habeas data é um remédio constitucional, previsto no artigo 5º, inciso LXXII, destinado a assegurar que um cidadão tenha acesso a dados e informações pessoais que estejam sob posse do Estado brasileiro, ou de entidades privadas que tenham informações de caráter público.
Seria bizarro ter de usar esse remédio.
Esse Brasil. Se não existisse, teríamos que o inventar.