Há cerca de dois meses e meio, estive com o professor Pedro Serrano, no apartamento dele, em São Paulo. Falamos durante cerca de duas horas, e realizei uma entrevista que, em parte, vai ao ar na semana que vem, no documentário “Crônica de Uma Sentença Anunciada — Como Lula Foi Tirado das Eleições.”
Serrano é professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e tem pós-doutorado na Universidade de Lisboa. Ele estudou formas de governos totalitários e, durante a entrevista, usou muitas vezes uma expressão que eu estava ouvindo pela primeira vez: “autoritarismo líquido”.
Segundo ele, não existe mais uma ditadura concentrada na figura de um ditador, mas ondas autoritárias que se manifestam em determinados situações e se desfazem. Está muito presente no Brasil, como ficou claro na Lava Jato, mas existem também em outras partes do mundo.
É, na opinião dele, um avanço para destruir o mundo civilizado nos padrões que surgiram após a Segunda Guerra Mundial.
Pode ser uma onda passageira, mas pode não ser. A frequência do autoritarismo líquido vai depender da resistência dos setores democráticos da sociedade, que também se conectam, a exemplo da onda de caráter fascista, só que hoje com muito menos intensidade.
Lembrei da entrevista quando recebi hoje uma gravação de cerca de sete minutos, com uma entrevista que ele concedeu à rádio Brasil Atual.
A entrevista foi realizada depois que Sergio Moro aceitou ser super ministro de Bolsonaro. O que ele disse nesta entrevista é muito similar ao que disse no nosso encontro, dois meses atrás.
Ou seja, quando conversamos, é como se ele já anunciasse o que viria por aí. E não deu outra. É preocupante, mas tem saída.
Bolsonaro se aproveitou do autoritarismo líquido para alcançar a vitória eleitoral. Sob certo sentido, é uma contradição.
É anacrônico como ditador, daí porque manterá a fachada de legalidade em suas ações, mas está aprendendo muito bem a manejar os mecanismos do autoritarismo líquido.
O acerto com Moro se enquadra nesta estratégia.
Alguns pontos da entrevista de Pedro Serra à rádio Brasil Atual:
Sobre semelhanças com a Alemanha nazista:
Ele (Hitler) tinha uma estrutura concentrada de poderes, mecanismo que se faz como hoje, por exemplo, no Ministério da Justiça, que vai trazer o COAF para dentro de sei e a Controladoria Geral da União e vai tratar ao mesmo tempo do exercício das forças policiais de Estado e da aplicação de uma legislação de exceção que está se construindo, que busca perseguir as esquerdas e os movimentos sociais, como declarou já o presidente eleito.
Ou seja, as condições estão dadas. O presidente eleito declarou que vai perseguir a oposição, vai prender ou expulsar do país. Declarou isso claramente. Agora está construindo a estrutura legislativa para isso, o que já se iniciou com o decreto no governo Temer, que cria o sistema concentrado de inteligência.
O próximo passo é criar uma estrutura estatal própria de perseguição dos inimigos, que é esse Ministério da Justiça e coloca para capitaneá-lo o maior agente público de produção de medidas de exceção e de autoritarismo líquido no período anterior (Sergio Moro).
Portanto, está tudo estruturado nesse sentido. Para mim, é muito semelhante ao caminho que Hitler percorreu na década de 30.
PT, PSOL e movimentos sociais
O repórter pergunta: “E sem falar da atitude do senador não eleito Magno Malta de tentar fazer com que a legislação anti-terrorismo fique cada vez mais dura, não é. professor?
Isso é um dos passos. O primeiro passo foi você concentrar uma atividade de inteligência, dizendo que ela se destina a combater organizações criminosas. Só que, na lei, não está claro o que é organização criminosa. Essa lei tem sido usada para perseguir também movimentos sociais.
Aí fica uma estrutura de estado nesse super ministério que concentra uma série de atividades de polícia e fiscalização da cidadania. E força física para poder realizar o armamento e exercer o poder de polícia. E você tem agora essa modificação que vai haver nessa lei anti-terrorismo. O presidente eleito já declarou que não tem o objetivo de perseguir verdadeiras organizações criminosas, PCC, isso ele não está muito preocupado. Ele quer perseguir lideranças do PSOL e do PT. Ele acha que têm que ser trancafiados, o MST e o MTST. Ele quer perseguir a oposição. Não quer críticas.
O totalitarismo de Bolsonaro
Ele fala em nome de Deus se achando Deus, não sujeito a críticas. Não se julga um ser humano. É típico do ser totalitário isso. E agora escolhe para gerir a sua Gestapo esse juiz que teve um comportamento estranho à magistratura. Eu me lembro da capa da Veja com ele num ringue de pugilato, com ele de um lado e o Lula de outro. Isso não é papel de juiz. Papel de juiz não é brigar com réu. Papel de juiz não é ficar brigando com advogado de defesa. Papel de juiz é ouvir a defesa.
Semelhanças com o totalitarismo de Stálin
O que nós tivemos contra Lula é algo semelhante aos processos de Moscou, de Stálin, onde havia juízes, havia advogados, havia tribunal, havia recurso, mas no fundo era tudo uma pantomima armada para obter uma finalidade política de tirano. O que estamos vendo hoje é isso.
Os processos contra Lula e contra algumas das pessoas que foram aprisionadas na Lava Jato é isso. Alguns dos processos são corretos, outros não. Outros foram forma de pavimentar o acesso dessa extrema direita ao poder. E hoje estão sendo premiados por isso.
O dever da resistência democrática
Isso que estamos vendo hoje é o prêmio pela pavimentação do caminho que esse segmento do Judiciário fez para que a extrema direita pudesse assumir o poder.
É bom porque agora está explicito. Acabou. Caíram-se os véus. A função era política desde o começo e isso hoje é a consagração desse ponto de vista e cabe a nós rezar para Deus e pedir para a sociedade brasileira resistir a esse avanço do totalitarismo, porque vamos ter tempos negros pela frente.
Acabou a Lava Jato com a ida de Sergio Moro ao governo?
Perdeu o que havia ainda de supedâneo (base) moral possível numa sociedade democrática. A democracia não é só um procedimento de escolha, com base em decisões majoritárias. Ela é uma moralidade, que foi constituída no pós-guerra com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e uma série de opções políticas e morais que a democracia liberal faz.
O que havia ainda de sustentação ético-moral a esse tipo de operação caiu agora, porque ficou demonstrado que a finalidade todo tempo foi fazer espetáculo, fazer marketing, com vistas à pavimentação do caminho ao poder da extrema direita, considerada pelo mundo extrema direita, não sou eu que estou falando.
Totalitarismo de Bolsonaro perverte o liberalismo
Inclusive a direita européia considera Bolsonaro um exemplo de extremista e procura nele se legitimar e diz: extremistas não somos nós, é o Bolsonaro do Brasil.
Há diversos artigos, editoriais de jornais. A Economist, que é uma publicação liberal, fala que há uma perversão do liberalismo no Brasil, porque se junta liberalismo de mercado com totalitarismo.
Ou seja, o mundo está observando o que está acontecendo: a extrema direita chegar ao poder. Isso foi pavimentado por uma parte do Judiciário e por essa operação. A fidelidade era política, ficou claro agora. E dles vão ocupar uma parte do poder de Estado.