Publicado originalmente na Agência Pública:
Por Giulia Afiune
Colocar os direitos dos pacientes em primeiro lugar é o que o Dr. Drauzio Varella vem fazendo ao longo de seus mais de cinquenta anos de profissão. Médico oncologista formado pela Universidade de São Paulo, ele foi um dos primeiros a se dedicar ao tratamento da AIDS no Brasil, fazendo campanhas de prevenção e esclarecimento veiculadas no rádio. Durante décadas, ele atuou – e ainda atua – como médico voluntário junto à população carcerária em São Paulo. Hoje, em meio à pandemia, ele afirma que médicos não têm direito de prescrever remédios ineficazes contra o coronavírus, pois isso fere a ética da profissão.
“Eu sou oncologista, então eu tenho direito de usar uma droga que não tem efeito na doença daquele paciente? Esse é um direito meu? E o direito do doente? [O doente] que está recebendo uma droga que não vai acrescentar nada e poderá juntar efeitos colaterais. O médico não tem esse direito, não. O médico tem que se basear na melhor informação científica disponível para adaptá-la para aquele paciente”, diz.
Escritor e comunicador, Dr. Drauzio dedicou boa parte da sua vida profissional à divulgação de ciência e informação sobre saúde para a população, primeiro no rádio, depois na televisão, e hoje também na internet. É por isso que ele se diz decepcionado ao ver que um vídeo seu – gravado antes do coronavírus se alastrar pelo mundo, em que ele diz que a Covid seria um “resfriadinho” na maioria dos casos – foi usado por membros do governo federal para minimizar a pandemia e propagar desinformação. “É uma coisa tão baixa”, critica. “E é destinada a fazer o quê? A confundir a população. A justificar os absurdos que o Presidente da República fala – e não é que ele falou em janeiro do ano passado, quando a epidemia não estava aqui. Ele fala até agora. Passou um ano inteiro confundindo a população, dando exemplo pessoal de como você faz para facilitar a disseminação do vírus. Isso sim é um crime que não pode ficar sem punição.”
Aos brasileiros que estão desanimados e desiludidos, ele tem um recado claro: “Nós temos que resistir.” Ele conta que ouvia histórias de sua avó, que no início do século XX sobreviveu à gripe espanhola no Brasil numa época em que as famílias não tinham nem rádio em casa. “Hoje, uma parte expressiva da população fica em casa com televisão, com internet, se falando pelo zoom, e a gente vai dizer que não aguenta mais? Tem que aguentar. Sai, máscara, volta. Não se aglomera, não fica se juntando com os outros, não é a hora, não vai ser assim pra sempre. Vai passar. Nós estamos vivendo os piores momentos, e agora é a hora que a gente tem que sobreviver, porque senão a gente não deixa descendentes, né?”
Às vésperas de completar 78 anos, Drauzio Varella foi escolhido para essa entrevista exclusiva pelos Aliados da Pública e, durante a conversa, respondeu perguntas que eles nos enviaram. Você quer escolher quem a Pública vai entrevistar e participar das próximas Entrevistas dos Aliados? Seja Aliado da Pública.
O senhor afirmou que o presidente Bolsonaro é o grande responsável pela disseminação da pandemia no Brasil. Quais foram os principais erros que ele cometeu?
Bom, eu acho que ele é o principal, mas não é o único. Há muita gente responsável, inclusive esses meninos de classe média que se metem nos bares, que organizam festas clandestinas, e outras autoridades que também negaram as medidas de proteção da sociedade.
Mas ele é o maior responsável por uma razão muito simples: é o presidente da República, autoridade máxima do país, que detém o controle do Ministério da Saúde. Quem é que tinha que coordenar todo o esforço de combate à epidemia? Era o Ministério da Saúde. Quem nomeou os ministros da Saúde? Foi ele. Então, ele é o maior responsável, não há como fugir dessa responsabilidade.
Nós tínhamos que ter aprendido uma lição fundamental na epidemia da AIDS: você só combate a epidemia quando tem uma coordenação central, uma autoridade que chama para si a responsabilidade de adotar as medidas mais sensatas de acordo com a opinião dos técnicos e da ciência, que é o único recurso que a gente tem.
No caso da Aids, quando começamos a ter drogas altamente eficazes, a partir de dezembro de 1995, o Ministério da Saúde assumiu a liderança, juntou um grupo de jovens técnicos, sanitaristas, infectologistas, e disse o que nós tínhamos que fazer, que era distribuir medicamentos para todos [os pacientes]. Na época, essas drogas custavam muito caro, saíam na faixa de dois, três mil dólares por mês. Vê o tamanho do desafio? Nós fomos pra cima dos fabricantes das drogas, pra cima das multinacionais, quebraram patentes, negociaram o preço, e conseguiram 90% de abatimento. Drogas que custavam cem passaram a custar dez pro governo e aí foi possível combater a epidemia.
[Mas] quando veio esta epidemia [de covid-19], nós tivemos a situação oposta. Primeiro, nós tivemos o Ministério da Saúde completamente degradado. Não porque não tenha gente boa, os quadros do Ministério da Saúde do Brasil sempre foram gente preparada e competente. Mas, as alterações que o ministério sofreu pra colocar lá militares – que eu não tenho nada contra, lógico, mas [são] pessoas que não tinham nenhum preparo na área da saúde… Deu no que deu. E tivemos um Presidente da República que, pessoalmente, adotou medidas para dar exemplos do que nós deveríamos fazer se quiséssemos disseminar a epidemia mais depressa: sair por aí sem máscara, provocando aglomerações.
[Também] tem o erro crasso de não pensar nas vacinas quando elas estavam disponíveis. Qualquer pessoa diria, ‘bom, os Estados Unidos, a Europa, a Ásia tão indo atrás, nós temos que ir atrás também’. Era arriscado, claro, mas a troco de que os países estavam investindo bilhões de dólares na compra de vacinas? São idiotas? Eles estavam afim de jogar dinheiro fora? Quando todos os países estavam correndo em busca das vacinas, não havia por que o Brasil não fazer o mesmo, né?
E nós falhamos. Por sorte nossa, nós tínhamos o Instituto Butantã em São Paulo e a Fiocruz no Rio de Janeiro, que se empenharam para a obtenção da vacina. Mas isso foi uma iniciativa dos dois institutos, não foi uma iniciativa do governo federal que disse, ‘olha, vamos organizar, vamos ver se nós dispomos da tecnologia, vamos apoiar o Butantã’. Ao contrário, o presidente pessoalmente declarou guerra ao Butantã, dizendo que era uma vacina chinesa, que o Ministério da Saúde não ia comprar. São coisas completamente sem sentido.
A pergunta que mais recebemos dos nossos Aliados foi: qual a sua opinião sobre os médicos que receitam o chamado “tratamento precoce” ou “kit-Covid” com cloroquina, ivermectina e outros remédios que hoje sabemos que são comprovadamente ineficazes contra o coronavírus?
Minha opinião é a pior possível, né? Como é que você tem um médico que sai defendendo uma droga inútil, com nenhuma eficácia demonstrada, para que continue sendo receitada? A medicina não pode ser assim A medicina tem que ser baseada nas evidências científicas. Isso é o que diferencia a medicina atual daquela que foi praticada há 100 anos atrás, [quando] os médicos faziam sangria, aplicavam sanguessugas. Isso foi feito durante milênios, quando a medicina não era baseada nas evidências.
O que mudou da metade do século passado para agora foi a necessidade de você comprovar que determinado tratamento tem ação contra aquela doença. Todos os estudos que foram feitos até aqui não permitiram identificar uma única droga com a ação contra o coronavírus. Quem não gostaria de ter uma droga barata com toxicidade conhecida, que pudesse ser administrada nas fases iniciais da doença e que impedisse que a doença se tornasse grave, ou que curasse a doença? Por que nós somos contra? Porque não há nenhuma evidência. Não é que não há evidências de que a droga seja útil. As evidências todas são de que elas são inúteis. E que ainda podem acrescentar efeitos colaterais.
E o que o senhor acha que leva tantos médicos a aderirem a esses tratamentos que não funcionam? É um posicionamento político se sobrepondo à ética médica?
Acho que sim. Eu só consigo ver duas razões. A primeira é a ignorância e a segunda é uma decisão política.
Muita gente também falou do papel do Conselho Federal de Medicina, que deu aval aos médicos para escolherem prescrever esses medicamentos. Como o senhor avalia esse posicionamento?
Eu acho que o Conselho Federal de Medicina e vários outros conselhos estaduais são órgãos políticos, são órgãos comandados por pessoas que são políticas, que estão ali para defender as suas posições políticas e os seus interesses políticos e pessoais. É disso que se trata.
Você vê na internet médicos de avental branco, com o nome bordado no bolso do avental, falando absurdos, as coisas mais cretinas que alguém pode dizer e levantando boatos que vão ter influência na população de um modo geral e os nossos Conselhos estão mudos. Não falam nada, deixam correr. Essas pessoas estão identificadas. Eles tinham que ser chamados, dizer: ‘Meu filho, o que tá acontecendo com você? Por que você disse uma coisa dessas, qual é a justificativa?’
Mas, infelizmente, ao lado dos médicos que estão dando um grande exemplo pra população lá nos hospitais, tratando dos doentes, se expondo, expondo as suas famílias à transmissão do vírus e os que estão aí educando a população, se esforçando, se expondo também a retaliações políticas, nós temos esse lado dos médicos que realmente tem um papel que eu acho desprezível nesse episódio todo.
Os médicos que receitam esses medicamentos inócuos e até perigosos deveriam ser punidos?
Eu acho que nós temos um código de ética muito rigoroso, sabe? Quando vemos o ministro da Saúde fazendo uma acrobacia intelectual para dizer que o médico tem direito de receitar o medicamento que ele quiser… O direito como? Eu sou oncologista, então eu tenho direito de usar uma droga que não tem efeito na doença daquele paciente? Esse é um direito meu? E o direito do doente? [O doente] que está recebendo uma droga que não vai acrescentar nada e poderá juntar efeitos colaterais. O médico não tem esse direito, não. O médico tem que se basear na melhor informação científica disponível para adaptá-la para aquele paciente. O direito de adaptar, sim. Isso é o que a gente chama de arte da medicina.
A medicina é uma arte. O que é a ciência? É o conhecimento científico. E a arte é, como que eu aplico esse conhecimento científico para essa pessoa em particular, que tem 30 anos, que tem essas características de vida, enfim. Esse é o direito que o médico tem. Mas ele pegar uma droga, ou várias drogas, que não têm nenhuma eficácia e administrar para o paciente, ele não tem esse direito, de jeito nenhum.
Eu vejo o Ministro da Saúde dando essas explicações e tentando fazer esse contorcionismo, e eu lembro daquele ditado popular que em cadeia eles usam muito. É ele querer provar que a linguiça comeu o cachorro.
Um dos nossos Aliados fez uma pergunta que resume o que muitos brasileiros estão sentindo agora: nós vamos conseguir acabar com a pandemia ou ela vai acabar conosco antes?
Não, nenhuma epidemia acabou com a humanidade, nem com um país sequer. Nós tivemos a epidemia de peste na idade média, em 1400 e pouco, que matou metade da população europeia, uma coisa muito assustadora. Mas não matou toda a população.
Primeiro, não é fácil você combater esse vírus, em lugar nenhum do mundo. Aqui as coisas também estão muito polarizadas, ‘ah, porque o governo, ah, porque o governo’, nenhum governo do mundo, nenhum governante, nem o governante ideal pra população brasileira nesse momento seria capaz de impedir mortes. Claro que não. O que não aconteceria é de nós termos nos transformado no campeão mundial em número de mortes diárias.
Nós estamos tendo três mil e tantas mortes por dia, há vários dias. Imagine que nós tivéssemos agora 420 milhões de doses de uma vacina mágica, que você deu duas doses, pronto, ninguém mais pega a doença. Ia acabar a epidemia? Claro. Mas ia acabar agora? Evidente que não. Primeiro porque você precisa de um tempo pra administrar essa vacina, depois porque as pessoas que já adquiriram o vírus vão desenvolver a doença. Quando morre alguém, essa pessoa se infectou, no mínimo, duas ou três semanas atrás. Então, as mortes por coronavírus contam a história da epidemia no passado, não no presente.
Já seria um problema terrível. Agora, imagina nós não termos vacinas suficientes. O cálculo que os epidemiologistas fazem, se correr tudo bem, se chegar o que vem da Índia e da China, se as fábricas da Fiocruz e do Butantã seguirem o cronograma direitinho, nós vamos ter todos os brasileiros dos grupos acima de 60 anos e mais os grupos de riscos vacinados até fevereiro do ano que vem. Isso é um longo processo. E tem tanto “se” no caminho que esse cronograma pode não ser respeitado.
Então, a situação é de que nós vamos conviver com o vírus. Ele vai continuar sendo transmitido enquanto nós não vacinarmos todos os brasileiros, até as crianças. E mesmo assim, conseguir 100% de cobertura vacinal da população inteira é muito complicado. Mesmo para o Brasil, que tinha um dos melhores programas de imunização do mundo, mesmo a gente contando com essa infraestrutura de 38 mil salas de vacinação espalhadas pelo país, não será fácil a gente vacinar um número suficiente de brasileiros para fazer o vírus desaparecer.
Hoje estamos no pior momento da pandemia, mas mesmo assim parte da população precisa sair para trabalhar, e parte insiste em se arriscar deliberadamente por não acreditar nas medidas de prevenção. O que poderia ser feito – tanto pelas pessoas individualmente quanto pelo Estado – para melhorar esse cenário?
No iniciozinho, em janeiro de 2020, eu mesmo achei que enquanto a doença estava só na China, não tinha chegado no Brasil, não parecia que seria uma ameaça tão grave. Eu e muitos outros, o Anthony Fauci nos Estados Unidos achou que não haveria uma mortalidade maior do que a gripe, e ele é a maior autoridade em doenças infecciosas no país. Quando estava na China, a gente não recebia as informações que refletiam a realidade, né?
Mas em fevereiro de 2020, do jeito que a doença apareceu na Itália, que é um país livre em informação, a situação ficou clara pro mundo. A partir desse momento, eu pensei que seria difícil no Brasil porque as medidas tomadas na Europa e na Ásia foram de isolamento social de cara. E nós aqui teremos muita dificuldade, porque temos um cinturão de pobreza e de miséria nas periferias das cidades brasileiras que não permite que as pessoas que não têm recursos sobrevivam sem sair pra rua para trabalhar todos os dias. O cara que vende objetos nas ruas, o que vende sanduíche, o que vende cafezinho, como é que essas pessoas vão sobreviver? Eles saem, ganham aquele dinheirinho, correm pro supermercado, e chegam em casa com a compra do dia seguinte. Eles não têm poupança, aplicação em CDB, para poder escapar da fome. E agora nós estamos vendo como é grande essa população de brasileiros que não dispõe de recurso nenhum. Essa seria a população que teria mais chance de se infectar mesmo.
Mas, aí, nós partimos de um erro, que eu espero que nunca mais seja cometido em nenhuma nova epidemia no país, que é o conceito do grupo de risco. Esse conceito colabora muito para a disseminação da epidemia. O que a gente dizia na época da AIDS? Os grupos de risco eram os homens homossexuais e os usuários de droga injetável. Então você era mulher, não usava droga na veia, você não fazia parte do grupo de risco, e aí você se arriscava. Você arranjava um namorado que era bissexual ou que era usuário de droga e você não sabia. Você expõe a população quando estabelece a coisa do grupo de risco.
O que aconteceu aqui foi a mesma coisa. Quem é o grupo de risco? Quem tem mais de 60 anos, pressão alta, diabetes, obesidade. Aí o cara tem 35 anos, vai à academia três vezes por semana, não tem pressão alta nem diabetes, não tem nada disso. Ele acha que tudo bem com ele. E olha o que tá acontecendo agora: nas UTIs brasileiras, mais da metade são jovens com menos de 40 anos. Por quê? Porque acreditaram nessa história dos grupos de risco.
Espero que nunca mais seja feito isso no Brasil. Não temos grupos de risco, nós temos comportamentos de risco. E aí, infelizmente, isso irmana aqueles que saem pra trabalhar, porque não têm alternativa, e os outros que saem pra passear, pra fazer festas em ambientes fechados.
Então o que podemos fazer hoje? O que está faltando?
Nós temos que pensar assim: o que foi feito de errado no Brasil, já foi feito. Daqui pra frente, como nós temos que pensar? Bom, nós vamos conviver com esse vírus por muito tempo. Então nós temos que ensinar as criancinhas, os jovenzinhos, a usar máscara o tempo todo. A máscara tem que fazer parte do nosso vestuário, assim como eu não saio de casa sem camisa, nós não podemos mais sair sem máscara. A ciência é que tem que dizer pra população o que pode e o que não pode fazer.
Não fizemos assim com a AIDs? A gente dizia como é que tem que ser sua vida sexual, o que você pode fazer que não tem risco e o que você não pode fazer que tem risco. Não dá pra fazer como a igreja fazia: não pode ter atividade sexual, sexo só no casamento. Resolveria o problema, mas as pessoas são teimosas, elas não obedecem.
Nós temos que dizer o que é possível. Por exemplo, ao ar livre, o risco é menor de pegar o vírus do que dentro de um ambiente fechado. Então, ‘ah, eu vou sair pra dar uma volta porque eu não aguento mais’, você pode sair com a máscara. Só que você não vai encontrar o amigo ou amiga na esquina e abraçar e beijar. Tem que estabelecer quais são as regras pras pessoas entrarem nesse jogo com segurança.
Bom, aí o que acontece? ‘Eu não saio, fico trancado em casa. E chega no fim de semana, eu tenho dois casais de amigos que tão trancados como a gente, vamos convidar eles pra vir aqui’. É assim que se transmite o vírus. Porque você fica num ambiente fechado, às vezes as pessoas até chegam de máscara, aí na hora que serve o primeiro aperitivo tem que tirar a máscara, depois já ficam sem. Você pode estar aglomerado com cem pessoas e não ter nenhuma infectada e você não corre risco nenhum, e você pode receber a visita de uma pessoa só, infectada, que te transmite o vírus.
Eu acho que daqui em diante, nós temos que fazer essas definições e divulgar isso pelos meios de comunicação. Nós passamos essa epidemia inteira e o que nós divulgamos pelos meios de comunicação de massa? Eu participo do Todos Pela Saúde, nós que fizemos a primeira campanha para utilização de máscara. Isso não tem cabimento, uma iniciativa privada fazer uma coisa que caberia às autoridades federais, estaduais, municipais, a todos.
O senhor defende um lockdown rigoroso, como foi feito em Araraquara?
Olha, as pessoas pensam que você faz um lockdown por decreto e funciona, não funciona. Há a necessidade de uma coordenação central. Fecha tudo? Não, não tem como fechar tudo, fica sem pão em casa, fica sem comida, é impossível. As pessoas que fazem as atividades essenciais têm que pegar ônibus, metrô, trem, isso tem que ser uma coisa muito organizada. Em Araraquara, o prefeito se reuniu com os industriais da região, com os comerciantes, com lideranças, sindicatos, estabeleceu medidas, formas de manter a população em casa, auxílio para manter a população. Foi uma ação na qual participou não apenas o governo municipal, mas os empresários também, dando cestas básicas etc. E aí ele partiu pra uma coisa que foi pra valer e conseguiu esse resultado maravilhoso. Só não foi mais maravilhoso porque as cidades em volta não fizeram isso. Então, você olha as UTIs em Araraquara, os pacientes internados não são mais de Araraquara, vieram das cidades vizinhas.
Eu não vejo condição prática de nós fazermos isso mais no Brasil. Você pode fazer uma redução e conseguir um certo grau de lockdown num estado. São Paulo, por exemplo, agora parece que está começando a experimentar as vantagens do fechamento. Foi um lockdown? Não, foi uma redução da mobilidade da população. Aí o que acontece? Você fica sob uma pressão grande dos comerciantes porque a situação deles é aflitiva: se tem funcionários, eles demitem todo mundo, fecham o negócio deles, que às vezes vem de uma geração para outra, se destrói tudo? Então, você não consegue manter por muito tempo e usa qual critério [para reabrir]? Começa a reduzir o número de casos na UTI, começa a ver uma certa folga de leitos para evitar o colapso integral, abre um pouco e aí aumenta o número de casos. Nós vamos levar isso por cada vez mais tempo, porque a gente não consegue manter o distanciamento social.
Eu acho que nós temos que investir nesse momento na máscara, pesadamente. Máscara custa barato. Colocar máscara em todos os lugares, distribuir para a população, orientar como se usa, propagandas na televisão, no rádio, lideranças da sociedade toda insistindo no uso da máscara, porque isso tem um impacto. E eu acho que é um fim atingível, você pode convencer a população de que vai ter que usar máscara ainda por muitos meses.
A pandemia no Brasil veio acompanhada de uma série de problemas sociais, econômicos e políticos que tornaram essa situação gravíssima e com certeza deixarão sequelas no nosso país. Uma Aliada perguntou quais são os efeitos negativos de longo prazo na saúde que mais te preocupam?
Primeiro são as sequelas. Essa não é uma doença que tem um curso típico de infecção viral na qual você fica doente, febre, outros sintomas, depois tudo passa, o sistema imunológico se recupera e você toca a vida pra frente. Quantas gripes a gente não teve que ocorreram dessa maneira? Essa doença é um vírus que se dissemina pelo corpo todo, e provoca fenômenos inflamatórios especialmente nos músculos, no coração, nos pulmões, no fígado e em outros órgãos, até no cérebro. E uma proporção razoável dos pacientes não consegue resolver isso em duas semanas. Ficam com sequelas que se mantêm. A gente vê na televisão pessoas que saem das UTIs de cadeira de rodas. Muitos não conseguem andar, às vezes pessoas fortes.
Nós temos um outro lado dessa questão que é o seguinte: o vírus vai ficar. Se o vírus vai ficar, vai continuar havendo uma demanda no Sistema Único de Saúde. Não vai ter jeito. Nós não podemos relaxar neste ponto, dizer: ‘bom, então desmobiliza, esquece os leitos de UTI, fecha.’ Vai ter que fazer essa operação com cuidados. Veja a diferença da primeira pra segunda onda, ela nos pegou de surpresa. Leitos fechados, hospitais de campanha fechados. Não estou dizendo que eles deviam ter permanecido abertos, porque manter uma estrutura dessas sai caro e não tem nenhuma utilidade por meses. Mas nós temos que ter agilidade pra montar outros rapidamente se eles forem necessários. Então nós vamos ter a necessidade de uma vigilância do sistema de saúde.
E aí, nós temos um lado bom. Pelo menos agora os brasileiros entenderam o que é o SUS. O SUS tá na Constituição desde 1988. E nesses 30 anos, qual era a imagem que o brasileiro tinha do SUS? O pronto-socorro lotado de gente, maca no corredor, gente no chão, as pessoas reclamando que estão lá há horas e não são atendidas. Não levavam em consideração o nosso Programa Nacional de Imunizações, o programa da AIDS, o programa de transplantes que nós temos no Brasil – o maior número de transplantes gratuitos do mundo. Os EUA fazem mais que nós, mas vai ver quanto custa lá. Hoje, quando a gente sofre um acidente, alguém passa a mão no telefone e em cinco minutos chega o resgate. O que é o resgate? É o SUS chegando ali. Você tem um programa de hemodiálises no Brasil, nenhuma cidade fica a mais de 200 km de um centro de hemodiálise, e as hemodiálises são gratuitas pra todo mundo.
Nós temos ilhas de excelência no SUS. Falta a nós uma política de saúde porque nós não levamos a saúde a sério. A população leva, claro, mas os políticos não levam a saúde a sério. Vamos pegar antes do governo atual, pra não dizerem que estamos sendo parciais. De 2009 a 2019, quando tomou posse o novo governo, nós tivemos 13 ministros da saúde, em dez anos. A média de permanência no cargo foi de dez meses. O que você faz em dez meses? Dá pra criar uma política de saúde? Não dá. E nem daria porque os ministros da saúde não são especialistas em saúde, não são sanitaristas com boa formação, não são grandes gestores públicos. Eles são políticos. E o Ministério da Saúde, que é um ministério que só compra, é disputado com unhas e dentes pelos políticos. Então, pra agradar o partido X, que o Presidente justifica dizendo que precisa ter maioria na Câmara e no Congresso, eles dão pro partido Y, depois troca e põe o partido Z. E é assim que funciona. Isso que eu tô dizendo pro governo federal funciona pro estadual e pro municipal também. Esse é o problema. Enquanto a gente não se convencer que a Saúde é uma prioridade do jeito que é a Educação, que nós precisamos de técnicos preparados, nós precisamos de políticas públicas, vai ficar dessa maneira.
E, outra pergunta de uma leitora: o que podemos fazer, como comunidade, como sociedade para evitar novos surtos como o que vivemos hoje?
A primeira coisa que a gente precisa ter é informação. Quer dizer o seguinte: de repente numa região da Amazônia, onde está o contato do homem com o mata virgem, aparece uma doença estranha. Rapidamente, nós temos que identificar e sequenciar, conhecer o genes do agente que provocou essa doença para, a partir daí, montar estratégias de tratamento e de contenção.
Nós tivemos a epidemia em Manaus, essa coisa terrível. Onde é que foi descoberta a variante P1, que depois se espalhou pelo país inteiro? Em Tóquio, no Japão. Pegaram japoneses que tinham estado em Manaus e chegaram lá com a doença, e sequenciaram. Se não fossem os japoneses, pode ser que a gente não tivesse sequenciado ou levado muito tempo pra fazer o sequenciamento. Então, nós temos que investir na ciência, que é a única forma de você lidar com esse tipo de problema. Não há outra.
A desinformação e o negacionismo estão permeando e atrapalhando nosso combate à pandemia. Muita gente perguntou como dialogar com as pessoas que não acreditam nas medidas de prevenção? Que argumentos a gente pode usar com essas pessoas?
Olha, é difícil. Se dissesse que a epidemia tá começando agora, mas começou em março do ano passado. Se essas pessoas não se convenceram ainda de que é uma coisa grave, de como a doença se espalha, do perigo que correm, é difícil você conseguir convencê-las com argumentos, né? Com argumentos você consegue convencer pessoas que são racionais. As pessoas que agem nessa base, que se negam a enxergar, que tomam uma atitude irracional, não é com argumentos que você vai convencê-los, é com medidas coercitivas. Não toma vacina, então não viaja, por exemplo. Não é assim que a gente faz com as outras vacinas? Não leva a criança pra tomar a vacina, não recebe o Bolsa Família, aí as pessoas correm e levam. Nós vamos ter que agir assim com essas pessoas irracionais.
E o senhor também acabou sendo alvo da desinformação, né? Aquele vídeo de janeiro de 2020, em que se refere à Covid como um um resfriadinho na maioria dos casos foi disseminado por seguidores, por políticos próximos e até pelo próprio presidente. O senhor se dedica há tanto tempo a comunicar a divulgar a ciência e a saúde de forma clara, como foi ter uma fala sua usada de forma distorcida, sem contexto?
É lógico que você fica decepcionado. Você tem uma vida inteira de atuação profissional, grande parte dela dedicada à divulgação de conhecimentos científicos e de informações sobre saúde para a população. E aí, você vê, de repente, pegarem uma fala sua que foi feita em janeiro [de 2020], quando não havia nenhum caso no Brasil, não havia nenhum caso na Itália ainda. As informações que nós tínhamos eram da China. Lógico que eu errei, evidente. Mas acho que eu não cometi um erro de avaliação naquele momento porque nós não tínhamos dados. O mundo inteiro não esperava que isso acontecesse.
Agora, você pega uma frase dessa e joga nesse contexto… até agora, toda hora repetem isso: ‘ai, não era um resfriadinho?’. Eu tenho um desprezo tão profundo por essa gente [que espalha desinformação] que, sinceramente, não me atinge mais, sabe? Porque é uma gente desclassificada, é o pior tipo de brasileiro que pode existir. Eu não tenho diálogo com essas pessoas. Não vão me atingir, eu não sou candidato a nada, nunca serei, meu trabalho não é político. Não levo a sério. É uma coisa tão baixa. E é destinada a fazer o quê? A confundir a população. A justificar os absurdos que o Presidente da República fala – e não é que ele falou em janeiro do ano passado, quando a epidemia não estava aqui. Ele fala até agora. Passou um ano inteiro confundindo a população. Dando exemplo pessoal de como facilitar a disseminação do vírus. Isso sim é um crime que não pode ficar sem punição, eu acho. Nem sei qual a punição, isso nem cabe a mim, isso é coisa dos dos juristas.
A informação que eu recebi é que o primeiro a colocar esse vídeo foi o Ministro do Meio Ambiente. Aí você vê de onde vem, né?
Sim, o filho do Presidente também.
É, pois é.
Após um ano de pandemia, muitos brasileiros estão exaustos e desiludidos. Que mensagem o senhor teria para as pessoas que estão se sentindo assim?
Nós temos que resistir. Quando eu tinha seis, sete anos, minha avó me contava as histórias da gripe espanhola. Ela e meu avô tinham três filhos pequenos naquela época. Ela dizia: ‘ah, filho, você não imagina o que aconteceu aqui. A gente tinha que ficar fechado em casa, só saía correndo pra comprar alguma coisa na venda e trazia pra casa. E mesmo assim, a gente ia com muito medo porque as pessoas morriam, as famílias velavam durante a noite, e na manhã seguinte colocavam os corpos na calçada pras carroças levarem pra enterrar em valas coletivas.’ É uma história que eu ouvi de pequenininho, e tenho até hoje essa imagem dos corpos na calçada. A gente morava no Brás, que é um bairro operário aqui de São Paulo.
Nós somos descendentes – todos nós, você, eu e todos que estão nos lendo – de pessoas que sobreviveram à gripe espanhola e puderam deixar descendentes dessa maneira. Eles sobreviveram numa época [entre 1918 e 1920], em que eles tinham que ficar trancados em casa e não tinham nem rádio. Imagine.
Hoje, uma parte expressiva da população fica em casa com televisão, com internet, se falando pelo zoom, e a gente vai dizer que não aguenta mais? Tem que aguentar. Sai, máscara, volta. Não se aglomera, não fica se juntando com os outros, não é a hora, não vai ser assim pra sempre. Vai passar. Nós estamos vivendo os piores momentos, e agora é a hora que a gente tem que sobreviver, porque senão a gente não deixa descendentes, né?
Falando nisso, um dos nossos editores que leu o seu livro sobre corridas perguntou como o senhor tem se organizado pra manter as atividades físicas que tanto preza?
Eu não gosto tanto, eu faço porque é preciso [risos]. Eu estou convencido de que, se quiser envelhecer bem, você tem que fazer exercício. Fazer exercício é difícil. Nenhum animal desperdiça energia sem necessidade. Os animais gastam energia atrás de comida, atrás de sexo ou pra fugir de predadores. Com essas três necessidades garantidas, eles ficam parados, não se mexem. E nós também temos essa tendência. Mas eu estou convencido de que todo mundo quer viver muito, mas não a qualquer preço. Você não quer viver muito numa cadeira de rodas, dando trabalho pra família, né? Você quer viver muito legal, enquanto estiver bem. Quando não tiver mais, tudo bem, tá na hora de se despedir.
Então eu faço exercício mesmo. Agora eu tô com essa dificuldade das ruas, mas eu subo a escadaria do prédio. Eu faço isso há muitos anos, mas agora eu faço como exercício mesmo, pelo menos quatro vezes por semana. Meu prédio tem 16 andares, eu subo a escadaria, desço de elevador, subo de novo. Eu não vou falar quantas vezes eu faço isso, porque vocês vão achar que eu sou mentiroso.
Ah, fala, por favor. É mais de duas?
Muito mais que isso.
Dez?
Não, senhora, não vou falar. Lógico que você não vai pegar e subir 16 andares na primeira vez, mas você começa fazendo uma vez. O segredo é descer de elevador, porque na descida você machuca o joelho. E quando você desce, você faz aquele alongamento de dobrar o corpo e pôr a mão no pé, sem dobrar os joelhos. É importante isso.