A cidadania honorária concedida a Jair Bolsonaro pela cidade italiana de Anguillara Veneto parece ter jogado a pacata cidade de pouco mais de 4 mil habitantes numa tormenta que não acaba.
Liderando uma coalizão progressista e minoritária na comuna governada pela extrema direita, Antonio Spada propôs retirar a honraria de Bolsonaro. Em entrevista ao DCM, o vereador expõe uma farsa.
Mas a moção foi rejeitada em uma sessão no último sábado que lhe pareceu mera formalidade. “Eu acho que eles não decidem. Eu acho que alguém numa alta posição ou no partido A Liga ou no partido Irmãos da Itália deu a ordem para não retirar a cidadania honorária.”
Em 2021, a visita de Bolsonaro a Anguillara, chamada pela prefeitura de “histórica”, havia sido acompanhada por poderosos guias, como Matteo Salvini. O líder do partido A Liga faz hoje parte do governo Meloni, também de extrema direita.
Em paralelo, o vereador líder de uma coalizão progressista que reúne partidos de centro, esquerda e direita, move um processo na justiça para retirar a honraria. “Bolsonaro não preenche nenhum desses requisitos.”
Ele relata as consequências negativas para a cidade e seu alerta ao governo nacional sobre os riscos de receber os Bolsonaros em caso de fuga da justiça.
DCM: Por que você propôs à Câmara dos Vereadores de Anguillara Vêneta para retirar a a cidadania honorária de Jair Bolsonaro?
Antonio Spada: Tem dois aspectos. O primeiro é a questão da oportunidade. O segundo é aquilo que é correto de acordo com a lei.
Bolsonaro é uma figura controversa, que provoca muita polarização nesse momento histórico. O que eu tentei dizer à prefeita de Anguillara é que não podemos julgar Bolsonaro nesse momento.
Quando eles deram a honraria a Bolsonaro, eles disseram que era um ato simbólico pelo Brasil. Mas na verdade, Bolsonaro não representa mais o Brasil. Ele representa apenas uma parte da população do Brasil.
Isso pareceu algo feito para ele, não pelo Brasil, a favor dele, não a favor do Brasil inteiro.
DCM: Esse argumento de que era uma honraria ao Brasil foi repetido agora (na última sessão da Câmara dos Vereadores)?
Antonio Spada: Sim. Bolsonaro (já) era uma figura particular na política mundial um ano atrás, dois anos atrás e mesmo dez anos atrás. Era fácil entender que ele era uma figura que polarizava.
Conceder a honraria a Bolsonaro foi muito arriscado porque isso polarizou a percepção de Anguillara no mundo.
Eu não gosto muito de Bolsonaro, mas eu entendo que outras pessoas possam dizer que ele é um bom político. Para mim, não (risos).
Eu tento manter uma posição neutra no meu julgamento nesse momento.
DCM: O que você pensa da rejeição pela Câmara dos Vereadores à moção que você propôs?
Antonio Spada: Eu acho que eles não decidem. Eu acho que alguém numa alta posição ou no partido A Liga ou no partido Irmãos da Itália deu a ordem para não retirar a cidadania honorária.
Uma outra questão está ligada ao orgulho. Ela (Alessandra Buoso) tem muito orgulho do que ela faz e do que ela pensa.
No tribunal, eu contestei o aspecto técnico da honraria. Com o meu advogado, nós falamos com o juiz e estamos tentando demonstrar que não é correto de acordo com a lei e o regulamento que temos sobre a cidadania (honorária).
DCM: Qual é o argumento?
Antonio Spada: No regulamento está escrito que a cidadania é concedida a uma pessoa que é universalmente reconhecida por ter trazido historicamente uma vantagem à toda a população mundial; na cultura, que obteve resultados artísticos, científicos e culturais universalmente reconhecidos; ou promoveu, difundiu a cultura, a história e a identidade de Anguillara Vêneta no mundo todo.
Esses são os parâmetros da cidadania honoraria. Bolsonaro não tem nenhum desses requisitos. Por quê? Porque a história ainda não julgou. A história está sendo feita agora. Daqui a dez anos, descobrir-se-á se é um grande político.
Atualmente, ele não promoveu Anguillara Vêneta no mundo, a começar pelos dois últimos anos.
Se se soubesse que Bolsonaro estava contente com suas origens italianas, que promoveu a cultura italiana e em especial da comuna de Anguillara Vêneta…
Tecnicamente, ele não preenche nenhum requisito. Não fui eu que escrevi o regulamento. Foram eles! Eles concedem uma cidadania sem considerarem o que eles decidiram! É um paradoxo.
Todos os italianos repetem o respeito aos princípios de democracia, liberdade e paz. Bolsonaro está no centro de tantas polêmicas sobre isso. E assim, não era oportuno dar-lhe a cidadania.
DCM: O que lhe faz pensar que os Irmãos da Itália deram uma ordem para não retirar a cidadania honorária?ve
Antonio Spada: Eu não sei se são os Irmãos da Itália, A Liga ou outro. Mas falando com jornalistas italianos, vendo como as coisas se desenvolvem, nós dissemos que é difícil pensar que se organizou em poucos meses tudo isso apenas com a administração (local).
Seguramente, houve uma ponte, um contato. Quando se deu a cidadania honorária, houve vários personagens que gravitavam em torno daqueles partidos, que estavam se movendo e fazendo os trâmites. E provavelmente para chegar àquela cidadania, houve um acordo comum, uma pressão da parte dessas pessoas.
DCM: Talvez Matteo Salvini?
Antonio Spada: Não sei. Não disse que foi necessariamente Salvini ou outra (determinada) pessoa. Quando houve o almoço com o presidente, apresentaram-se tantos expoentes, inclusive parlamentares europeus do grupo A Liga, digamos que parece improvável que fosse obra pura do grupo da prefeita.
Tem um outro fato que me fez pensar muito. Sábado de manhã, na sessão, eu e outro líder da minoria, tivemos uma reunião com a prefeita da maioria para falar da questão (da cidadania honorária). Quando meu outro colega pergunta à prefeita: “em vez da cidadania, por que não fazemos uma geminação com São Paulo?”
Porque São Paulo é a cidade em que a maior parte dos italianos mais migraram. Ela responde “eu não posso”. Mas por que não podia? Se ela pôde dar a cidadania, por que não poderia fazer outra coisa? Eu creio que eles se encontram numa situação de forte pressão.
Estranha e grosseiramente, a prefeita disse não à geminação (com São Paulo).
DCM: Então a prefeita recusou as duas propostas?
Antonio Spada: Sim. O argumento para recusar a fraternidade com São Paulo foi que eu recorri ao Tribunal para retirar a cidadania honorária a Bolsonaro. Mas é uma motivação estranha. Porque a cidadania honorária a Bolsonaro não tem nada a ver com a jumelagem. É muito estranho como resposta.
DCM: É estranho que Alessandra Buoso não queira falar com os jornalistas?
Antonio Spada: Sim. Há muito constrangimento. A prefeita não responde aos jornalistas. Eu soube que há dois anos ela falou praticamente apenas com um apresentador televisivo do campo da direita. Mas responde com dificuldade as entrevistas com a imprensa. Ela só publicou declaração no Facebook, essencialmente para os seus apoiadores.
Soube de um caso que estamos investigando, sobre um jornalista italiano que tentando entrevistar a prefeita e os vereadores da maioria foi agredido. Estamos tentando entender o que aconteceu porque é muito grave.
DCM: O que a população pensa dessa cidadania honorária?
Antonio Spada: A questão em si não é muito entendida e não interessa muito. Há um cansaço de ser o centro dessa discussão.
É um povo pacato. Alguns lamentam que essa cidadania honorária criou todo esse problema. A outra metade não queria que eu dissesse nada e deixasse quieto, para não criar confusão.
Há uma dificuldade em compreender o peso internacional que este gesto provoca, inclusive para a imagem do país. Infelizmente, a população (de Anguillara) tem um pouco de medo de se expor.
Uma parte da população, se pudesse cancelar a cidadania honorária, fá-lo-ia imediatamente.
DCM: Uma parte?
Antonio Spada: Penso que um terço é contrário absolutamente à cidadania honorária a Bolsonaro e a todos os problemas que isso está criando.
Outro terço é contrário à cidadania honorária mas prefere, por medo, que não se falasse mais no assunto.
E depois um terço se interessa pouco pela cidadania honorária, que pensa que os jornalistas estão fazendo apenas polêmica e que já basta.
DCM: Então a maioria é contra a cidadania?
Antonio Spada: Eu não sei se é maioria. Mas há pouca vontade e muito medo de se expressar. Também medo da repercussão.
DCM: Você sabe o que pensam da pessoa de Jair Bolsonaro e se há uma identificação com ela?
Antonio Spada: Não, não acho. A maioria não sabe quase nada sobre Bolsonaro. Talvez nos setores de direita, tenham nele um expoente de direita importante. Mas não creio que haja identificação com a figura. Acredito que nem mesmo entre parentes.
DCM: No Brasil, fala-se do risco de Bolsonaro e sua família fugirem da justiça indo para a Itália. Dois dos seus filhos solicitaram a cidadania italiana. Devem conseguir?
Antonio Spada: Do ponto de vista burocrático, provavelmente sim. Porque, de acordo com a nossa legislação, basta haver um parentesco italiano.
No caso de Bolsonaro, a cidadania honorária não lhe dá automaticamente a cidadania jurídica italiana. Mas, na prática, digamos que pode ajudar, pois se trata de uma pessoa que tem um reconhecimento.
Do ponto de vista técnico, basta ter origem italiana para solicitar a cidadania e obtê-la. Nós alertamos a administração pública, não no sentido de intervir no processo técnico, mas sobre o aspecto político, de mandar uma mensagem ao governo.
Um dos filhos é investigado por corrupção. Estamos num momento tão delicado que imiscuir-se nessas questões é um risco para a própria Itália porque isso significaria tomar partido.
DCM: Giorgia Meloni apoia Bolsonaro?
Antonio Spada: Não sei. Até o momento, eles são um pouco ambíguos. Quando aconteceu o ataque, digamos a ocupação das sedes dos Poderes dia 8 de janeiro, o governo o condenou. A Liga também condenou. Depois que esses fatos ocorreram, muitos expoentes da Liga, que haviam apoiado Bolsonaro quatro anos atrás, hoje lavam as mãos.
Por um exemplo, Roberto Marcato, que é um parlamentar muito importante da Liga, disse numa entrevista à imprensa que havia apoiado Bolsonaro há quatro anos, mas que não sabia o que aconteceria quatro anos depois.
Penso que dentro da Liga haja um debate sobre se apoiam ou não a figura de Bolsonaro. Creio que essa administração e a prefeita podem ter abandonado seu destino substancialmente.