Publicado na Rede Brasil Atual
POR EDUARDO MARETTI
A determinação do presidente Jair Bolsonaro ao Ministério da Defesa, para que providenciasse “comemorações devidas” ao golpe de 1964, continua surtindo consequências jurídicas e políticas. O Ministério Público Federal (MPF) passou a recomendar às Forças Armadas de todo o país que não promovam tais celebrações. Em entrevista a um programa de TV nesta quarta-feira (27), Bolsonaro afirmou que não houve ditadura no país e que o regime militar teve apenas “probleminhas”, como num casamento.
“Acho impossível você agredir mais violentamente o Direito brasileiro do que dizendo que você quer comemorar a violação a esse Direito”, diz o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello. Para ele, uma das vozes mais importantes no meio jurídico brasileiro, o presidente da República cometeu crime de responsabilidade ao determinar a comemoração, com a ressalva de que teria de reexaminar melhor a Constituição e a legislação para dar uma resposta mais fundamentada.
Na terça (26), parentes de vítimas da ditadura e o Instituto Vladimir Herzog haviam pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) a concessão de liminar contra as comemorações. Por sua vez, ciente das repercussões políticas negativas de sua atitude, Bolsonaro recuou ontem e negou que tenha determinado os festejos. “Não foi comemorar, foi rememorar, rever o que está errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro”, disse.
Bandeira de Mello afirma que continua tão perplexo com a eleição de Bolsonaro quanto dias antes da eleição, quando declarou que o mais difícil de entender era o fato de o povo elegê-lo. “Os eventos sucessivos comprovaram que eu tinha muita razão em ficar estuporado”, observa. “O governo dele nem existe, praticamente. É uma catástrofe. Todo mundo vê que esse homem não tem capacidade para governar.”
Embora afirme que não espera “grande coisa” do Judiciário, Bandeira de Mello tem a expectativa de que Lula seja absolvido nas instâncias superiores e que o STF ponha fim à questão da prisão após condenação em segunda instância, em julgamento previsto para 10 de abril.
“Como o Lula está preso antes do trânsito em julgado, eu acredito que não há outro caminho senão liberar o Lula e os outros todos que estão na mesma situação.” Para o jurista, sendo o guardião da Constituição, o STF “vai ter que cumprir esse papel, se quiser prosseguir naquilo que é dever dele”.
Por telefone, Bandeira de Mello falou à RBA.
Ao determinar a comemoração do golpe de 64, o presidente incorreu em crime de responsabilidade?
Eu acho que sim. Porque ele não pode comemorar uma violação da democracia, dos direitos humanos aí compreendidos. Para mim, isto é um ato violador do Direito.
Segundo uma interpretação, a atitude não caracteriza crime de responsabilidade, que poderia provocar impeachment, mas seria crime de improbidade.
Eu teria que examinar melhor a questão para lhe dar uma resposta mais fundamentada. Mas, a meu ver, é difícil existir uma violação contra o Direito maior do que aquela de você elogiar a violação do sistema jurídico do país. Não vejo como seja possível violar de maneira mais grave do que essa.
O ex-ministro Eugênio Aragão considera que há crime de responsabilidade. Para o professor Pedro Serrano, é crime de improbidade.
Eu respeito muito a opinião do Pedro Serrano, que acho um homem de altíssimo nível, e na minha opinião o maior constitucionalista brasileiro no momento. Mas não concordo com ele. Acho impossível você agredir mais violentamente o Direito brasileiro do que dizendo que você quer comemorar uma violação a esse Direito.
A interpretação do Direito é muito subjetiva, não?
Olha, eu acho que o Direito não é tão subjetivo. Eu reconheço que no Direito há espaço para divergência em certas matérias. Mas, a meu ver, nessa matéria não há espaço. Quem comemora uma violação básica da Constituição, quem comemora um golpe militar está ofendendo até o limite possível o Direito, em termos de fala, claro, porque, mais do que isso, só com atos, não é?
Se isso configura um crime de responsabilidade, poderia dar margem ao impeachment?
Claro que poderia, se é crime de responsabilidade. Eu teria que reexaminar o texto (constitucional), mas eu acho que estou certo.
O presidente Jair Bolsonaro disse hoje (ontem) que não houve ditadura e que o regime militar só teve “probleminhas”…
Nem cabe comentar isso. Mas ele não se preocupa com isso. Ele não é um homem democrata. Esse homem foi deputado várias vezes, mas era um dos deputados menos cotados no Congresso. Eu tenho muita dificuldade de entender como esse homem saiu candidato e foi eleito. Confesso, com toda sinceridade, que tenho muita dificuldade de entender. Se fosse um grande deputado, um homem de posições notórias… Mas não era nada disso, era um deputado absolutamente obscuro. Por trás disso deve ter alguma coisa que eu não estou sabendo o que é… Não é possível o mais obscuro dos deputados ser candidato à presidência e ganhar as eleições. E ganhou bem. É difícil entender.
Na semana da eleição o sr. disse que achava que ele seria eleito e que lhe causava “estupor” o fato de o povo elegê-lo…
Continuo tão perplexo quanto eu estava antes. Acho apenas que os eventos sucessivos comprovaram que eu tinha muita razão em ficar estuporado. Porque o governo dele nem existe, praticamente. É uma catástrofe. Todo mundo vê que esse homem não tem capacidade para governar. Nenhuma.
O que o sr. espera do Judiciário daqui para a frente, nesse contexto?
Do Judiciário eu nunca espero grande coisa. Lamento dizer, mas não espero. Eu esperava antigamente muito do Judiciário. Hoje não espero mais. Infelizmente o nosso Poder Judiciário não revela a altivez que eu esperava dele. Ele já foi extremamente respeitado.
Uma coisa que me chamava muita atenção quando eu visitava a Argentina é que enquanto nós, brasileiros, tínhamos grande confiança e esperança no Poder Judiciário, eles, argentinos, não tinham nenhuma. Eu achava isso estranho, mas hoje eu acho que o Judiciário não oferece mais a mesma segurança que nos oferecia antigamente. Provavelmente a opinião da grande maioria da área jurídica é essa mesma. Não é que eu não acredite mais no Judiciário. Dentro de poucos dias vai ser julgado o Lula.
O que o sr. espera?
Espero absolvição.
Haverá o julgamento no STJ e, no STF, a questão da segunda instância. São duas possibilidades…
São duas. Acredito nos termos constitucionais, está escrito expressamente no texto, que ninguém pode ser preso senão depois de transitado em julgado. Tudo que tem ocorrido, a prisão sem transitar em julgado, é uma violação da Constituição óbvia, no meu modo de entender. Não há como dar outra interpretação. Eu acho que agora, na minha visão – que pode estar errada, evidente – vai haver uma retificação dessa linha, e se cumpra a Constituição, simplesmente. Isto é, que só transitando em julgado alguém possa ser preso. Como o Lula está preso antes do trânsito em julgado, eu acredito que não há outro caminho senão liberar o Lula e os outros todos que estão na mesma situação.
Que são muitos milhares…
Muitos. É um número muito grande de pessoas que estão condenadas sem que a matéria tenha chegado à última instância. Leia a Constituição, está expresso que alguém só pode ser condenado à prisão depois de transitado em julgado.
Parece que vai depender do voto da Rosa Weber…
Eu não sei de quem vai depender. Até a última conta que eu havia feito tinha uma vantagem de um voto a favor de cumprir a Constituição. Mas quem pode garantir que isso continue vigorando? Então, a gente fica na expectativa, embora a minha seja a de que o Lula, como os outros, todos, vão ser liberados se por acaso foram presos sem que se chegasse à última instância. E está chegando ao fim, isso. Vai ser dia 10, não é?
Mas antes deve ter o julgamento do STJ sobre o próprio recurso do Lula.
Pode ser. Eu não me impressiono muito com isso porque terá que ser julgado pelo Supremo, e o Supremo é a corte mais alta do país. Espero que ele ponha a Constituição em seus devidos termos. Até acredito nisso, não vou dizer que eu só espero, por uma esperança. Não, eu acredito nisso. O Supremo é o guardião da Constituição, e ele vai ter que cumprir esse papel, se quiser prosseguir naquilo que é dever dele.