Por Leonardo Sakamoto
O Brasil encontrou 3.151 trabalhadores em condições análogas às de escravo em 2023. O número é o maior desde os 3.765 resgatados em 2009. Foram 582 operações de fiscalização e R$ 12,5 milhões de verbas trabalhistas pagas nos resgates, dois recordes no período de um ano, segundo dados da Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego.
Com isso, o país ultrapassou 63,4 mil trabalhadores flagrados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995. A totalização está passando por revisão e pode oscilar para cima.
A atividade de onde mais trabalhadores foram resgatados foi o cultivo de café (300 pessoas), seguida pelo plantio de cana-de-açúcar (258), a limpeza e preparação da terra (249) e o cultivo de uva (210).
Mas considerando a quantidade de operações de resgate, a atividade econômica campeã foi a criação de bovinos de corte (62 operações), seguida por serviços domésticos (59), o cultivo de café (54) e a construção civil (34).
Levando em conta esses números parciais, Goiás foi o estado com o maior número de resgatados (735), acompanhado por Minas Gerais (643), São Paulo (387) e Rio Grande do Sul (333).
As operações são coordenadas pela Inspeção do Trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regionais do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.
‘Escravizados do vinho’ narraram tortura com choque e spray de pimenta
O resgate de 207 pessoas que atuavam na colheita e carga e descarga de uvas em Bento Gonçalves (RS), em fevereiro de 2023, repercutiu dentro e fora do país.
Os trabalhadores denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta. Eles trabalhavam para a empresa prestadora de serviço Fênix Serviços de Apoio Administrativo contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.
A operação teve início após um grupo fugir de um alojamento sem condições de higiene onde, segundo relataram, sofriam agressões. Vigilância armada era usada para garantir que tudo permanecesse do jeito que o patrão queria.
Eles já chegavam com dívidas de alimentação e transporte e, no alojamento, tinham que comprar produtos a preços muito acima do valor de mercado. Tudo isso era anotado como dívida, o que prendia os trabalhadores aos patrões.
Dos 207 trabalhadores resgatados, 56% têm entre 18 e 29 anos, 93% nasceram na Bahia, 95% se declaram negros (64% pardos e 31%, pretos) e 61% não concluíram o ensino fundamental ou são analfabetos. Todos são homens. Os dados são do Ministério do Trabalho e Emprego.
Na época, as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi informaram a imprensa que não tinham conhecimento do ocorrido, que não compactuam com a situação trabalhista encontrada e que os contratos com a empresa Fênix eram apenas para carga e descarga de uvas.
Maior resgate ocorreu na produção de cana em Goiás
A operação em Bento Gonçalves permaneceu pouco tempo como a que resgatou a maior quantidade de escravizados. Em março, 212 foram encontrados no plantio de cana-de-açúcar em Goiás. Eles estavam alojados em Itumbiara e Porteirão (GO) e Araporã (MG) e atuavam para a mesma prestadora de serviços que fornecia mão de obra a quatro fazendas e uma usina.
A prestadora de serviços terceirizados SS Nascimento Serviços e Transporte e cinco tomadores – quatro fazendas de cana e a unidade de Edéia (GO) da usina BP Bunge Bionergia (uma das maiores processadoras de cana do país) – assumiram a responsabilidade e se dividiram para pagar os trabalhadores.
Elas eram arregimentados no Piauí, no Maranhão e no Rio Grande do Norte através de “gatos” (contratadores de mão de obra) e transportados de forma clandestina para atuar na produção de cana em Goiás. “Quem tinha um pouco de dinheiro, comprava um colchão. Quem não tinha, dormia no chão, em cima de panos ou de papelão”, explicou à coluna o auditor fiscal Roberto Mendes, coordenador da operação.
Na época, a SS Nascimento Serviços e Transporte disse que “todos os fatos alegados serão devidamente esclarecidos no bojo dos processos administrativos e judiciais”. Já a BP Bunge Bioenergia disse, também em nota, que a empresa “agiu rapidamente em defesa dos trabalhadores para garantir as prioridades sociais e humanas e arcou prontamente com os pagamentos indenizatórios”.
Desembargador levou resgatada da escravidão de volta para casa
Sônia Maria de Jesus, resgatada de trabalho escravo doméstico por uma equipe de fiscalização na casa de um desembargador de Santa Catarina, em junho, foi levada de volta por ele para sua residência com anuência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, em setembro.
A Procuradoria-Geral da República denunciou Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina Gayotto, pelo crime de submissão de alguém à condição análoga à de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal. E endossou pedido da Defensoria Pública da União (DPU) para que ela seja novamente retirada da casa.
Com aval do ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba levou Sônia de volta para a casa dele em 6 de setembro. Negra e surda, ela estava em um abrigo desde que havia sido resgatada.
Diante da operação de resgate, o casal negou todas as acusações, disse que Sônia foi criada como uma filha e entrou com um ação para ser restituída ao seu convívio familiar.
Logo após a decisão de Campbell, o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, negou um habeas corpus impetrado pela DPU contra a decisão do STJ. Ambos autorizaram o desembargador e sua esposa a visitarem Sônia no abrigo e a levarem de volta para a residência deles, em Florianópolis (SC), caso ela demonstrasse “vontade clara e inequívoca”
Em seu parecer, a PGR afirma que há laudos técnicos que atestam a vulnerabilidade da mulher e a impossibilidade de sua manifestação de vontade de forma livre e inequívoca. E que há oito depoimentos prestados por ex-funcionários do casal confirmando que ela trabalhava cotidianamente sem o recebimento de salários.
Sônia tem deficiência auditiva, mas nunca havia sido ensinada a ela a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com isso, ela se comunicava principalmente por gestos com a família. Ela começou a aprender Libras e português no abrigo onde ficou após resgatada. Ela está há quase 40 anos com a família.
Segundo a fiscalização, na casa do desembargador, ela fazia refeições com as demais empregadas e realizava tarefas domésticas necessárias à rotina da residência, como arrumar camas, passar roupas e lavar louças sem o devido registro em carteira, sem receber salário, sem jornada de trabalho, férias e descansos semanais definidos. Não tinha acesso a atendimento de saúde, tendo perdido dentes.
Jorge Luiz de Borba afirmou que ela é sua filha afetiva, prometendo adotá-la. Contudo, uma postagem no Instagram de sua esposa mostra Sônia relacionada em uma lista de “funcionárias” do casal, conforme esta coluna revelou ainda em junho. Questionada pelo UOL, na época da publicação do resgate sobre as postagens no Instagram, a família Borba afirmou, através de sua assessoria, que “em respeito às decisões da Justiça, não haverá manifestação enquanto perdurar o sigilo”.
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, no serviço doméstico, entre outras atividades.
Como denunciar
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 2022, 1.654 foram enviadas pelo sistema. Denúncias também podem ser feitas através do Ministério Público do Trabalho, unidades da Polícia Federal, sindicatos de trabalhadores, escritórios da Comissão Pastoral da Terra, entre outros locais.
Publicado originalmente no UOL