Breque dos Apps é um freio coletivo na uberização e na degradação do trabalho, diz socióloga

Atualizado em 5 de agosto de 2020 às 14:48
 Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

Publicado originalmente no site do Instituto Humanista Unisinos

POR PATRICIA FACHIN

A segunda paralisação dos entregadores de aplicativos, realizada no dia 25-07-2020, conhecida como Breque dos Apps, teve menos adesão dos trabalhadores do que a primeira, realizada pela categoria em 1º de julho deste ano. Enquanto alguns analistas veem a manifestação com entusiasmo, porque demonstra a capacidade de organização dos trabalhadores, outros falam em “fracasso” e apontam para “divisões internas no movimento”, que é autônomo e se organiza pelas redes sociais. Ao comentar a última greve, a socióloga Ludmila Abílio diz que “a imagem das centenas de motos e bicicletas unidas pelas ruas da cidade é importante, mas não é só ela que dá a medida da adesão ou organização. Aderir ao breque pode ser simplesmente ficar em casa, sem ligar o aplicativo” ou “bloqueando a saída em locais dispersos de onde se originam entregas”. Segundo ela, “não é simples” medir o tamanho da adesão dos trabalhadores à paralisação, e também é preciso considerar as dificuldades envolvidas no processo, porque enquanto participam dos atos, eles não trabalham e não recebem.

Na avaliação dela, “é preciso ter muito cuidado” nas análises sobre as paralisações e nos discursos emergentes porque “há um mesmo discurso que desliza com conteúdos e propósitos diferentes”. Na segunda manifestação, menciona, houve uma tentativa de “desmobilização e desqualificação do movimento”, que se utilizou da linguagem e da luta dos trabalhadores para se voltar contra eles. “Um dos recursos é criar as imagens que dizem ‘veja como o movimento é fragmentado’, ‘veja como deputado tal está lá na manifestação’, ‘isso virou coisa de partido político’, ‘isso vai virar coisa de sindicato’, ‘os trabalhadores não querem direitos ou proteção’. Essa construção se faz com uma direção muito clara, se apropriando de uma histórica desqualificação da esquerda que é agravada por uma crise de representatividade que atravessa as ações coletivas e os processos políticos que estamos enfrentando nesta década. Seu horizonte é o da deslegitimação”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Ludmila comenta a pesquisa realizada pelo iFood com os entregadores e também critica o Projeto de Lei 3748/2020, da deputada Tabata Amaral, que propõe criar uma classe entre a CLT e o trabalho autônomo para regulamentar as atividades dos trabalhadores de aplicativos. Com este PL, na prática, “legaliza-se que o trabalhador passe 12 horas por dia à disposição da empresa, sete dias por semana, e ganhe menos que um salário mínimo por mês”, afirma. E questiona: “Isso é ser o trabalhador sob demanda, é isso que defendemos como esquerda?”

Ludmila Abílio é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Possui graduação em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP e mestrado em Sociologia pela mesma instituição. Realizou pós-doutorado na USP, pesquisando sobre a chamada nova classe média brasileira, tratando da relação entre exploração do trabalho e acumulação capitalista na última década, com estudo empírico sobre o trabalho dos motofretistas na cidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit, na Faculdade de Economia da Unicamp, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre desenvolvimento, atuais políticas de austeridade e as transformações do trabalho no Brasil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia a paralisação feita pelos entregadores no final de semana do dia 25-07-2020 em comparação com a primeira, que ocorreu em 1º de julho? Por que ela não teve a mesma adesão da anterior? 

Ludmila Abílio – Nós estamos vendo em ato a construção de um novo tipo de organização e resistência, que se forma na relação com este novo modo de gerenciamento, controle e organização do trabalho, que podemos definir como uberização. A multidão de trabalhadores uberizados se organizou, apropriando-se da potência que tem enquanto multidão. Neste processo de informalização e monopolização promovido pela uberização, o que vemos são centenas de milhares de pessoas trabalhando para uma, duas, cinco empresas. Quando essa multidão se organiza, são centenas de milhares contra uma, duas, cinco empresas. Mas evidentemente é uma ação atravessada por muitos dilemas e diferentes desdobramentos possíveis.

No caso dos entregadores, as ruas são seu local de trabalho e hoje também se tornam parte dos seus instrumentos de resistência. Bloquear os fluxos que correm pelas vias da cidade é um recurso poderoso, o fato é que a materialização da circulação como campo de dominação e resistência tem estado no cerne de diversas lutas pelo mundo nesta década. O Breque dos Apps é um freio coletivo na forma como este modo de controle da uberização se organiza e aprofunda cada vez mais os meios de degradação e exploração do trabalho.

Formas de adesão ao Breque dos Apps

Este freio se constrói de várias formas. A imagem das centenas de motos e bicicletas unidas pelas ruas da cidade é importante, mas não é só ela que dá a medida da adesão ou organização. Aderir ao breque pode ser simplesmente ficar em casa, sem ligar o aplicativo. Aderir ao breque pode ser não estar na manifestação, e sim com mais alguns trabalhadores bloqueando a saída em locais dispersos de onde se originam entregas.

Neste sentido, medir o tamanho da adesão não é simples, para nós. (Já para as empresas, tudo isso é mapeável e passível de ser bem contabilizado). Não sei se o próprio movimento tinha a expectativa de que este último breque fosse igual ou maior. Me parece que nessa organização horizontalizada a adesão e os próprios horizontes da luta estão em construção e movimento. Importa mais consolidar as redes e a construção de um campo comum de pautas e práticas do que ter dez mil entregadores na Av. Paulista e amanhã todo mundo voltar ao trabalho. A adesão aí é cotidiana e está sendo tecida. O breque talvez seja um freio na urgência, há um tempo histórico da construção.

Mas não podemos ignorar também as dificuldades da adesão. Como me dizia um motoboy que entrevistei em 2018, “no dia que vou para a manifestação não recebo nada, e no dia que trabalho durante a manifestação, ganho muito mais”. Parar não é fácil para o trabalhador uberizado, que a cada dia precisa garantir o ganho necessário para sua reprodução.

IHU On-Line – Um dos organizadores da última paralisação em Brasília disse que “a categoria optou pela não ajuda de sindicatos porque foram oportunistas no primeiro breque. É um movimento sem partidos, da categoria”. Além disso, uma pesquisa contratada pelo iFood indica que 53% dos mil entrevistados acham negativa a participação de partidos/sindicatos, 24% consideram positiva e 23% são indiferentes. Como avalia essas declarações e o que elas indicam, inclusive, sobre as novas formas de organizar e reivindicar melhorias para os trabalhadores? Por que os sindicatos são vistos desta forma?

Ludmila Abílio – Temos de considerar diversos elementos para pensar qual o lugar e as pontes possíveis com sindicatos e partidos.

É preciso muito cuidado com essa análise. Há um mesmo discurso que desliza com conteúdos e propósitos diferentes. Da primeira para a segunda manifestação, se consolida uma perspectiva claramente voltada para a desmobilização e desqualificação do movimento. Essa consolidação é bem refinada, e nunca se tem certeza de onde vem. Veja a sacada da página que surge no Facebook: “Não breca meu trampo”. Se apropria dos termos da luta e os joga de volta contra os trabalhadores. A empresa deixa de ser o problema, o problema é quem te impede de trabalhar. Um dos recursos é criar as imagens que dizem “veja como o movimento é fragmentado”, “veja como deputado tal está lá na manifestação”, “isso virou coisa de partido político”, “isso vai virar coisa de sindicato”, “os trabalhadores não querem direitos ou proteção”. Essa construção se faz com uma direção muito clara, se apropriando de uma histórica desqualificação da esquerda que é agravada por uma crise de representatividade que atravessa as ações coletivas e os processos políticos que estamos enfrentando nesta década. Seu horizonte é o da deslegitimação.

O mesmo discurso e propósitos distintos

Por outro lado, o mesmo discurso atravessa o movimento, mas seu conteúdo é outro. Ele também é perigoso, pois seus desdobramentos são imprevisíveis. Em realidade, nisto reside sua riqueza e seu perigo: formas de organização e demandas que escapam, que ultrapassam, que podem ser mais radicais que a demanda por uma regulação estatal, por exemplo, formas de organização horizontalizadas que não são e não querem ser canalizadas para a figura de uma liderança, de um partido, de um sindicato. Mas que também podem perigosamente resultar na defesa de um jogo livre de forças entre trabalhadores e empresas. Essa defesa desliza de novo para o outro lado – nós sabemos bem o que é o jogo da livre força entre capital e trabalho. Claro que, neste caso, o trabalho não é o trabalhador individual, mas uma força social do trabalho. Mas a rejeição de instituições e instrumentos políticos que passam pelo Estado pode ter consequências perversas para os próprios trabalhadores.

Pautar hoje a regulação é pautar o futuro dessa forma de organização e o controle do trabalho. A reforma trabalhista já abriu a porteira da uberização; a contraposição ao seu agravamento será coletivamente constituída com diversos atores políticos se for possível estabelecer pontes entre as demandas dos trabalhadores, sua forma de organização e a atualização de instrumentos jurídicos que reconheçam a subordinação e abarquem as especificidades do gerenciamento algorítmico.

Amadorização do trabalho

Outro elemento que permeia esse debate de forma implícita o tempo todo é o processo de amadorização do trabalho. Ou seja, a uberização engendra uma transformação na forma como a profissão se constitui, e então, ser entregador firma-se como uma estratégia da viração cotidiana da classe trabalhadora. Basta ter um cadastro aprovado e o instrumento de trabalho. O que era uma profissão – mesmo que precária, arriscada, atravessada por uma série de desigualdades e injustiças o tempo todo – se transforma num trabalho que vai perdendo sua forma de trabalho. Para entender isso é só olhar para o motorista da Uber e o taxista. Ambos fazem a mesma coisa, mas a constituição da identidade do motorista, sua relação com o trabalho, são muito diferentes da do taxista. Ele aparece sempre como um trabalhador amador. Isso possibilita perigosamente traduzir a uberização como uma “economia dos bicos”. O que invisibiliza que estamos vendo não um mero recurso para a sobrevivência, instável e esporádico, que se espraia: estamos presenciando uma nova forma de gestão e organização do trabalho e da classe trabalhadora.

Mas este processo de amadorização de fato canaliza para a uberização o desemprego, a crise econômica, a perda de rendimentos da pandemia, apresentando-se como a possibilidade precária e incerta de geração de renda. Então, toda essa potencialidade e força da organização coletiva da multidão vivem uma riqueza e um desafio. É a organização coletiva destes que bambeiam entre o desemprego, a informalidade, o emprego formal de alta rotatividade, os empreendimentos familiares, os bicos, num viver tipicamente periférico, que tece o mundo do trabalho brasileiro. Essa condição hoje é incorporada na constituição, afirmação e reconhecimento de um sujeito político periférico?

Terreno minado

Esta pergunta mira em horizontes políticos sem poder ignorar que nesse conflito as empresas contam com aqueles mais de 100 mil trabalhadores-cadastros que ainda nem foram aprovados. Mas veja que interessante, estaria aí sendo tecida uma solidariedade na condição periférica? Não é pauta do movimento, por exemplo, a limitação do número de entregadores para garantir melhores condições de trabalho. Inclusive podemos aventar que aí resida um dos elementos da possível resistência à formalização. Haverá lugar para todos?

Esta é sempre uma questão muito difícil de formular e responder. Uma questão que também desliza com a mesma forma e conteúdos diferentes. Pode-se dizer: é melhor ter um trabalho ruim do que nenhum trabalho, a máxima neoliberal de que “não há alternativa”. Já deslizando bem para o outro lado, pode-se dizer: são os socialmente descartáveis do capitalismo contemporâneo. Este já alcançou os elementos de sua autoextinção, se desfazendo da exploração do trabalho para sua reprodução; os trabalhadores estão apenas disputando um minúsculo lugar ao sol. Enquanto isso ficamos em casa, finalmente enxergando (espera-se!) que estes trabalhadores são essenciais não só para nossa vida hoje, mas para diversos circuitos da acumulação que se organizam e contam com essa superexploração do trabalho.

Esses elementos hoje atravessam os dilemas da representação e dos horizontes da esquerda. É preciso a imaginação política (desde a periferia) para não silenciar estes dilemas, não silenciar as novas formas de resistência e também não deslegitimar os muitos breques que compõem a história de lutas e são conquistas dos trabalhadores, incluídos aí as regulações do trabalho e os sindicatos. Tudo isso se coloca atualmente num terreno extremamente minado.

IHU On-Line – Uma pesquisa contratada pelo iFood ouviu mil entregadores em meados de julho e divulgou o seguinte resultado em relação ao modelo de trabalho: 70% preferem o modelo de trabalho atual e 30% preferem CLT. Como interpreta essa pesquisa e por que, na sua avaliação, a maioria dos trabalhadores entrevistados rejeita a CLT? Que vantagens eles veem no modelo de trabalho atual?

Ludmila Abílio – Esta pesquisa é fundamental para vermos a materialização dos discursos e para onde eles nos levam. Me remeto à análise crítica de Rodrigo Carelli sobre a formação de um discurso anti-CLT frente às manifestações.

Não é que 70% preferem o modelo atual, porque o que a pergunta descreve como modelo atual não tem nada a ver com a realidade. Como mostra o autor, a pergunta era: “Você prefere o modelo de trabalho atual, que te permite escolher os dias da semana e os horários em que gostaria de trabalhar, podendo ainda trabalhar com vários aplicativos e definir a melhor forma de compor sua renda, OU gostaria de ter carteira assinada para poder ter acesso a benefícios e direitos como 13º salário, férias, INSS e FGTS, mas tendo que cumprir horários e demais regras das empresas de aplicativos?”

O que ouvimos nesta pergunta é: você prefere ser livre para trabalhar como quiser, quanto quiser, para quem quiser, ou ter um patrão que te dá alguns direitos, mas controla tua vida? Mais do que isto, ouvimos também que, nessa liberdade toda, o modelo atual te “permite …definir a melhor forma de compor sua renda”. Nada mais irreal e distante da atual forma de vida dos entregadores. Em artigo recentemente publicado trago a definição de despotismo algorítmico. Temos sempre de explicitar a condição em que os trabalhadores uberizados se encontram e deixar claro que os entregadores são o espelho da uberização para muitas outras categorias no futuro. Iniciar o dia sem ter ideia do quanto se vai ganhar, viver pela rua esperando a próxima corrida que você não sabe por que veio ou não para você, por que tem tal valor. Ficar 12 horas por dia, sete dias por semana pedalando para ganhar menos que um salário mínimo. Ser uberizado é viver de forma incerta, instável e ao mesmo tempo subordinada a um controle centralizado e quase inatingível.

Controle centralizado, regras instáveis e final predefinido

O despotismo se refere não só à possibilidade de definir as regras cambiantes do jogo, mas o próprio desfecho do jogo. Quando o trabalhador aceita o desafio de tentar fazer dez corridas para obter uma bonificação, temos de entender que há um controle centralizado que, ao mesmo tempo que oferece o desafio, também define quem conseguirá ou não fazer as dez corridas.

Não há aleatoriedade, não há o bom jogador que se sai melhor frente à instabilidade permanente das regras (para pensar nas regras e nos jogadores veja o livro de Silvia Viana, Rituais de Sofrimento). As regras são instáveis e não negociáveis, mas, além disso, o próprio jogo já tem final predefinido. As estratégias individuais, assim como as competências e saberes individuais, são incorporadas e alimentam a própria gestão do trabalho, que mapeia o trabalhador individualizado e a multidão como um todo. São, numa retroalimentação permanente em que só um lado ganha, devolvidas na forma das regras, da distribuição e precificação do trabalho e controle da produtividade de cada trabalhador, que só é utilizado quando a empresa assim definir.

Então, o que a pergunta captura, como toda boa pesquisa de mercado, não é o que é, mas o que se gostaria que fosse. É interessante ver como nessa pesquisa está posta implicitamente a formulação da pauta dos entregadores. Não é o que se tem agora, é o horizonte que organiza a própria luta neste momento que está sendo interrogado aí. O que pediram os entregadores até aqui? Que possam ter um dia de trabalho que garanta o ganho ao final do mês sem terem de virar a noite na rua. Que não acordem para trabalhar e tenham sido desligados sem saber por quê. Essa certeza se relaciona também com valores e regras que de fato permitam que o trabalhador decida que trabalho quer fazer e quando. Aí mora o dilema: qual a possibilidade da autonomia em um trabalho que é, sem sombra de dúvida, subordinado? Uma subordinação despótica, por sinal.

Desafios

Há um desafio aí, para o movimento, para os sindicatos, para os partidos, para a academia: não obscurecer a ação de um trabalhador coletivo que não quer ter patrão – mas que também não nega o poder da empresa (o trabalhador sabe que não é chefe-de-si; não se trata de ingenuidade ou falsa consciência). Será que se trata de recusa às formas também opressivas e despóticas que atravessam a vida do trabalhador formal? Talvez sim, basta ver a ralação – agora indubitavelmente aprofundada – dos motoboys celetistas antes da uberização.

Mas, frente à subordinação, como negar o reconhecimento do vínculo empregatício como recurso urgente a favor dos trabalhadores? Falta no debate uma elaboração clara sobre uma regulação a favor dos trabalhadores, que leve em conta as especificidades desta relação. Suponhamos que a pergunta fosse outra, que interrogasse sobre um formato dentro da CLT que permitisse flexibilidade de horários e ao mesmo tempo garantisse a remuneração mensal, os limites diários da jornada de trabalho, proteções e garantias. Qual seria a resposta? O “modelo atual” ou a CLT? Mas, novamente, não podemos ignorar que o reconhecimento de vínculo empregatício já conta, por exemplo, com o perverso trabalho intermitente. Estamos pisando num campo minado com poucas estratégias de defesa. Por fim, teríamos ainda de investigar com mais cuidado que, frente a uma pergunta tão capciosa como a feita na pesquisa, ainda assim, aproximadamente um terço optou pela carteira assinada.

IHU On-Line – Uma das propostas discutidas na Câmara dos Deputados sobre a regulamentação dos trabalhadores de aplicativos é a da deputada Tabata Amaral, que propõe criar uma classe entre a CLT e o trabalho autônomo para enquadrar a categoria. Por que este projeto não é positivo, na sua avaliação?

Ludmila Abílio – Infelizmente, o projeto agora conta também com o pedido de coautoria de uma deputada do Psol. O que nos mostra, ao menos teoricamente, que o fenômeno da uberização ainda não está bem compreendido, menos ainda a formulação de instrumentos de resistência. Uma coisa é o projeto do deputado Ivan Valente, que estabelece, de forma circunscrita ao período de pandemia, uma série de proteções e garantias aos entregadores neste contexto específico. A outra é a transformação disto em apresentação de vários PLs a serem unificados e votados em regime de urgência. O PL 3748/2020 estabelece um regime de trabalho novo, intitulado trabalho sob demanda. Apesar de alguns benefícios que traz e que o tornam, num primeiro olhar, atrativo, o que está em jogo é isto: a regulação em regime de urgência da condição do trabalhador como um trabalhador sob demanda.

Venho utilizando a definição de trabalhador just-in-time para definir este modo de vida de um trabalhador que se torna sob demanda. Ser sob demanda é aquilo que já falávamos antes, é estar disponível e ser utilizado quando necessário. Faço essa discussão de forma mais aprofundada no artigo que mencionei sobre o despotismo algorítmico. Mas, de saída, há alguns elementos que temos de destacar e colocar de forma bem visível no debate. O projeto cria a mágica de afirmar que as empresas-aplicativo são mediadoras, e não contratantes, ao mesmo tempo que legisla sobre as responsabilidades, procedimentos e garantias que a empresa deve ter na relação com o trabalhador sob demanda. Quando vemos de perto, o projeto estabelece muito mais garantias do que responsabilidades para as empresas e o que oferece para o trabalhador é muito pouco perto da perversidade que se propõe a legalizar.

Projeto de Lei 3748/2020 – trabalho sob demanda

O cerne do projeto reside na equalização do tempo de trabalho remunerado ao que define como “tempo efetivo de produção”. O trabalhador será remunerado estritamente pelo tempo em que efetivamente realiza o trabalho que lhe for oferecido. O valor da sua hora de trabalho – contabilizada apenas sobre o que ele efetivamente produzir – deverá equivaler no mínimo ao valor do salário mínimo-hora (atualmente em torno de cinco reais). Todo o tempo em que estiver online sem produzir, à disposição da empresa, fica por conta do trabalhador (há uma remuneração de 30% pelo tempo de espera, uma espécie de indenização por essa terrível condição?). Todo o tempo que levar para se deslocar até o ponto de origem da entrega e os custos relativos ficam por conta do trabalhador.

Legisla-se sobre o valor mínimo legal da hora de trabalho, mas não se define nada com relação à duração da jornada de trabalho ou garantias mínimas sobre a produção. Quantas horas “efetivas de produção” serão oferecidas ao trabalhador? Sendo que ele é autônomo, mas todo seu trabalho é definido e controlado pela empresa: a carga de trabalho que lhe é ofertada, o valor do trabalho, intensidade e duração do trabalho. Quantas horas ele terá de ficar online aguardando a oferta de trabalho “efetivo” para poder alcançar o ganho mínimo necessário para sua sobrevivência? No projeto será garantido a ele um ganho mínimo por dia de trabalho? Não. Garante-se a legalidade do valor mínimo da hora “efetiva” de trabalho, mas não se garante o valor mínimo de um dia inteiro de trabalho. Para complicar mais, legaliza-se a ausência de qualquer limite sobre a jornada de trabalho. Promove-se assim a condição que mantém o trabalhador sem qualquer garantia sobre quanto tempo terá de trabalhar para ter um rendimento minimamente correspondente ao necessário para sua sobrevivência. Na prática: legaliza-se que o trabalhador passe 12 horas por dia à disposição da empresa, sete dias por semana, e ganhe menos que um salário mínimo por mês. Isso é ser o trabalhador sob demanda, é isso que defendemos como esquerda?

Despotismo algorítmico

Voltando o olhar para a figura do despotismo algorítmico, o projeto diz que o trabalhador não pode ser penalizado se recusar uma corrida (como se isso fosse o que garantiria sua liberdade de escolha…). Define que as regras têm de ser claras e que as empresas têm de fornecer os dados quando requisitadas pelos organismos de fiscalização. (Vale abrir parênteses aqui: até agora as empresas não divulgam de forma transparente nem mesmo o contingente de trabalhadores cadastrados. Ficamos nos dedicando às pesquisas que visam construir dados sobre o trabalho uberizado, mas estes dados já estão todos processados pelas empresas).

Regulações a favor do trabalhador

Voltando ao projeto, ao mesmo tempo que demanda que as regras sejam claras (algo bastante vago e que na prática pode ter diferentes sentidos e procedimentos), legaliza que o sistema de avaliação seja utilizado na determinação da forma de distribuição do trabalho. Ou seja, garante que regras sempre em movimento do gerenciamento algorítmico, a serem sempre definidas pela empresa da forma que for melhor para elas, sigam determinando qual o valor e o tempo de trabalho de cada trabalhador. Como um motoboy sintetiza: se a lei diz lá que não pode me bloquear porque não aceitei corrida, beleza, o aplicativo oficialmente não me bloqueia, só que também não me manda mais corrida. Qualquer regulação a favor do trabalhador tem de considerar os meios técnico-políticos que hoje operam na distribuição do trabalho. Por exemplo, não adianta fixar uma jornada sem garantir o correspondente mínimo do valor de um dia de trabalho. Assim como não adianta fixar o valor da hora de trabalho e não regular a distribuição do trabalho ao longo da jornada.