Publicado originalmente no Brasil de Fato:
POR NARA LACERDA
O ataque dos Estados Unidos a um comboio iraniano no aeroporto de Bagdá, no Iraque, transforma em prática as ameaças agressivas contra o país persa, que se tornaram comuns nos discursos do presidente estadunidense, Donald Trump.
Sete pessoas morreram no bombardeio, entre elas um dos principais integrantes do governo iraniano, o general Qassem Soleimani. Descrito como o general mais poderoso do Oriente Médio, Soleimani era chefe da Guarda Revolucionária do Irã, principal figura militar do país e idolatrado pela população.
Em nota, o Pentágono afirma que o ataque ocorreu porque Soleiman planejava atentados futuros contra os norte-americanos, mas não detalha a acusação. Para analistas e observadores, os motivos do assassinato são bem mais complexos e diversos. Da briga pelo controle do petróleo na região à tentativa de Donald Trump de minimizar a atenção ao processo de impeachment que ele sofre, a decisão passa também pela influência de Israel no governo dos Estados Unidos e por uma estratégia equivocada da atuação no Oriente Médio.
O professor da Fundação Getúlio Vargas Salem Nasser afirma que a explicação oficial do governo estadunidense só convence quem não tem nenhum contato com os temas do Oriente Médio.
“O fato é que Soleimani era um grande inimigo dos Estados Unidos e de Israel, e muito eficiente nas ações contra esses inimigos. Ele era o cérebro por trás da articulação dos aliados do Irã em toda a região e das vitórias que o Bloco de Resistência aos EUA vinha acumulando nos últimos anos. Resolver eliminar uma figura com tal dimensão e centralidade é uma decisão que não pode ser leviana”, analisa.
Nas palavras de Nasser, que é especialista em Oriente Médio, a ação dos Estados Unidos representa um divisor de águas e pode tanto indicar um passo mal calculado quanto uma tentativa de estratégia eleitoral.
“É muito difícil ler Trump, já que ele combina um processo errático, autocentrado, com grande desonestidade. É possível que essas ações sejam distrações de um presidente sob alguma pressão pelo impeachment, e é possível que agrade aos seus fiéis. É até possível que, embarcado numa aventura militar, ele consiga um novo mandato. No entanto, dificilmente dará bons frutos para os Estados Unidos”, afirma.
Declaração de guerra
O assassinato de um membro do altíssimo escalão do governo iraniano é considerado uma declaração de guerra, não só pelos representantes do país persa, mas também por parte da opinião pública norte-americana.
A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, do Partido Democrata, opositor a Trump, disse que o bombardeio foi realizado sem consulta ao Congresso e sem autorização para o uso de força militar contra o Irã. Ela afirmou ainda que o ataque foi uma ação provocativa e desproporcional, que coloca em risco a vida de militares, diplomatas e outros estadunidenses.
Em comunicado pela TV, o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, definiu três dias de luto no país e indicou que a morte de Soleimani não ficará sem reação. “Todos os inimigos devem saber que a jihad de resistência continuará com uma motivação dobrada, e uma vitória definitiva aguarda os combatentes na guerra santa”.
As afirmações do presidente iraniano, Hassan Rouhani, seguem a mesma linha e indicam que a resposta ao ataque está em andamento. “O martírio de Soleimani tornará o Irã mais decisivo para resistir ao expansionismo americano e defender nossos valores islâmicos. Sem dúvida, o Irã e outros países que buscam a liberdade na região se vingarão”.
No Brasil, o ex-ministro de relações Celso Amorim avaliou o episódio como a mais grave possibilidade de confronto entre dois Estados desde a crise dos mísseis – envolvendo EUA e União Soviética em território cubano, em 1962.
“Nós corremos um risco muito sério. Eu acho que foi uma ação muito leviana. O assassinato individual, assim, de um líder é algo muito raro nas Relações Internacionais e sempre provoca reações muito fortes. E o Irã não é um país que fica com meias medidas”, interpreta.
Tensões históricas por influência e petróleo
Os conflitos nas relações entre Estados Unidos e Irã são históricos. Em 1953, um golpe militar apoiado pela CIA derrubou o governo democraticamente eleito que havia nacionalizado o petróleo. A ditadura durou até 1979, quando foi derrubada pela Revolução Islâmica em 1979.
Igor Fuser, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, explica que, a partir de então, sucessivos governos norte-americanos tentaram acabar com o regime xiita e extinguir a influência iraniana na região.
“Os Estados Unidos não aceitam nenhum país do mundo que contrarie seus interesses. Eles não estão dispostos a desistir do assédio. É um assédio permanente dos Estados Unidos contra o Irã”.
Essa estratégia levou os Estados Unidos a financiarem a guerra entre Irã e Iraque, iniciada em 1980 e que durou quase dez anos, causando a destruição dos dois países, com mais de um milhão de mortes. Atualmente o governo estadunidense aplica sanções que bloqueiam a venda de petróleo por parte do país persa e impede o desenvolvimento da região.
O professor Fuser ressalta, no entanto, que ainda assim a influência do país de maioria xiita cresce na região.
“O Irã é uma potência regional, é o maior país do Oriente Médio. Tem recursos naturais, tem indústria, é uma sociedade relativamente desenvolvida, tem força militar. É um país que naturalmente tende a projetar influência. Os Estados Unidos não admitem nenhuma potência regional que possa agir em função de interesses próprios e que possam se chocar contra os interesses dos Estados Unidos”, aponta.
Israel: aliado com voz
Principal aliado dos Estados Unidos na região, Israel elogiou diretamente o ataque ao Irã. O primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, ressaltou que: “Da mesma forma que Israel tem o direito de autodefesa, os EUA têm exatamente o mesmo direito. Qasem Soleimani é responsável pela morte de cidadãos norte-americanos e muitas outras pessoas inocentes. Ele estava planejando mais ataques como esses”.
As hostilidades entre Israel e Irã também aumentaram após a Revolução Islâmica e as duas nações cortaram relações diplomáticas. Igor Fuser explica que, além dos conflitos históricos, há um interesse dos israelenses em manter o clima de conflito.
“A gente não pode ignorar o papel belicoso que Israel joga. O país tem total interesse em jogar ‘lenha na fogueira’ em tudo que diz respeito ao Irã. Israel tem interesse em manter um clima de confrontação no panorama mais amplo do Oriente Médio. Porque na medida em que o Irã se torna o centro das atenções, Israel sai de foco e fica com as mãos livres para consolidar a ocupação da Palestina”, indica.
Reações e impactos no preço do petróleo
Apesar das afirmações de membros do governo iraniano de que haverá reação, a possibilidade de uma guerra total é descartada por especialistas. É unânime, no entanto, a percepção de que o ataque norte-americano vai aumentar as tensões e conflitos no Oriente Médio.
Já o impacto na economia deve ser sentido no mundo todo. O Irã é o décimo maior produtor de petróleo do planeta e controla o Estreito de Ormuz – que liga o Golfo Pérsico ao Oceano Índico –, onde cerca de 20% da produção mundial precisa passar pela região.
Após o bombardeio norte-americano, o preço do Barril apresentou alta de 4% e chegou a US$ 70.