Se os resultados da gestão bolsonarista do coronavirus são percebidos na Europa como um desastre assim como a de Trump nos Estados Unidos ou Putin na Rússia, o Brasil tem um aspecto singular. “Com o confinamento, a burguesia descobre as tarefas domésticas”, observa o jornal francês Libération.
Na crônica semanal “Vu du monde”, reservada a países emergentes, foi desta vez o Brasil que ganhou destaque, mais uma vez desde o golpe não pelos seus aspectos mais enaltecedores. Mas, por suas velhas mazelas, que apontam um elemento novo.
A correspondente do jornal Chantal Rayes constata que durante a pandemia “os ricos aprendem a viver sem suas empregadas domésticas e sofrem por ter que fazer faxina”.
Ela chama de “espetáculo” o que vê: “a burguesa branca brasileira se dedicando às tarefas domésticas”.
A repórter resolveu observar (melhor do que espiar) a vizinhança. Ela descreve uma jovem mulher num sábado à noite, num imóvel de luxo: “Pano de chão na mão, uma jovem mulher, dessas que nasceram para serem servidas, encara o vitrô da cozinha, enquanto seu marido passa o esfregão. Eles seguiriam até o fim antes de passar ao exército das domésticas em serviço, obrigados pela Covid-19”.
Um “choque cultural” é como Rayes qualifica esse novo fenômeno para 11% dos lares que empregam 6,5 milhões de trabalhadoras e trabalhadores doméstic@s no Brasil, onde a cor não lhe escapa aos olhos: “Em grande maioria trabalhadoras, de cor”.
No imaginário nacional brasileiro, analisa a correspondente, a figura da “doméstica” está arraigada. “Frequentemente, a própria interessada acha inconcebível que a patroa ou o patrão limpem o vaso, mesmo que lhes pertença. Ainda mais agora. O confinamento mudou radicalmente o modo de vida. Ao menos provisoriamente. A burguesia descobre um cômodo em que jamais pôs os pés: a despensa”.
Aponta a justificativa de uma dermatologista de ricos em São Paulo, Ligia Kogos: “O sabão, a faxina, ‘irritam as mãos’”.
Agora, observa, o nível de exigência dentro de casa mudou. “Equipam-se. No Google, as pesquisas por aspiradores robôs quadruplicaram”. Uma certa “Cleide achava a empregada lenta demais”.
“70% dos lares que recorriam ao trabalho doméstico renunciaram na quarentena, mas apenas 39% mantiveram o pagamento da empregada”, aponta Rayes no Libération, ponderando que o dado é “provavelmente superestimado”. “Os 30% restantes foram demitidos”.
Resta a maioria esmagadora das domésticas “mas também as diaristas, ainda mais precárias, não declaradas”. A lembrança da empregada morta no Rio, “depois de infectada pela patroa que voltou da Itália, sem avisar de seu estado de saúde” parece chocante frente à menção dos “serviços julgados como essenciais para os ricos, que foram mantidos, a exemplo de seguranças de imóveis extremamente seguros ou ainda de homens de faxina que limpam as partes comuns, tirando a lata de lixo andar por andar”.
Será que o vírus obteve uma pequena revolução no Brasil? Se revolução for a mudança de uma classe no poder, seguramente não. A natureza da relação dos pobres com o mundo de é a mesma, a da dominação, da obediência, só que mais profundas.
O que mudou substancialmente foi o tipo de relação corporal dos ricos com o mundo. Pela primeira vez desde o Império, tocam o mundo em que vivem. O vírus gerou uma transformação dentro de uma classe pelos sentidos, redistribuindo um papel.