Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan e familiares do dramaturgo Augusto Boal, morto em 2009, e do ator e compositor Mario Lago, que faleceu em 2002, moveram uma ação conjunta por danos morais contra a deputada estadual Ana Campagnolo (PSL).
O motivo é o uso não autorizado de músicas em um “curso antifeminista”. Facebook e Google também foram processados. Cada artista pede R$ 50 mil de indenização e a retirada da palhaçada das plataformas online.
“A mentira é a base de todas as ações daquilo que o bolsonarismo chama de guerra cultural. Dessa vez, mentiram para conseguirem a autorização de uso das obras, falsearam a história num conteúdo antifeminista e omitiram o interesse comercial. Nada disso foi autorizado. O judiciário precisa dar uma resposta dura”, disse o advogado João Tancredo, responsável pelo processo, a Ancelmo Gois no Globo.
Em 2019, o falecido grande repórter Renan Antunes de Oliveira, do DCM, esteve com ela:
A deputada estadual do PSL-SC Ana Caroline Campagnolo tem 28 anos, 1m69, 64 kg. Seu cabelo atual é fake. O verdadeiro é preto.
Ela se esforça para não parecer sexy. Óculos quadradões escondem o rosto. As orelhas estão cobertas por delicados piercings de ouro.
Ana é aquela professora pró Escola Sem Partido, da linha ler a bíblia e mandar bala. Ano passado ela causou no Brasil pedindo aos alunos para gravar professores com falas esquerdopatas.
Vapt ficou mais conhecida do que aquilo, vupt virou política pró-Bolsonaro. (…)
Além de hiperativa, se definiu como “sanguínea e colérica”. Este temperamento ela disse que herdou do pai, o sargento PM Job Campagnolo, gaúcho descendente de italianos.
No gabinete dela, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, empoderada pelo mandato de quase 35 mil votos, exibe as imagens de seis santos, vários crucifixos e um enorme retrato de Jair Bolsonoro – os últimos com certeza a ajudaram na eleição.
Ela não fez os mais de 60 mil para eleição direta. Na matemática dos deputados estaduais, a soma de votos na legenda do PSL deu direito a seis membros, escolhidos entre os mais votados. Ana foi a quarta colocada do partido e assim conseguiu sua vaga na Assembleia Legislativa de SC.
Ali, nos primeiros dias de um mandato que ela não esperava receber, Ana Caroline ainda está extasiada com o brinquedo novo, atende todo mundo numa boa. Ela não controla direito o deslumbramento e a agitação porque são “forças da natureza” dentro dela.
No piccolo mondo do gabinete convive com seis parças. São quatro rapazes e um advogado já idoso, além de Marcos Meurer, chefe de gabinete, 31, seu Rasputin – sabem aquele monge que dava dicas para a imperatriz da Rússia, lá atrás? Parecido.
A única mulher na assessoria é dona Rejane, uma ex-funcionária do ex-deputado Paulinho Bornhausen que se ajeitou no cargo depois de uma rápida negociação partidária, necessária porque só ela conhecia os bastidores do Legislativo.
Pasmem: a deputada Ana trouxe até um ex-namorado para gravitar por ali, ajudando na produção dos vídeos com que ela se comunica com o eleitorado nas redes.
Segundo ela, ele não está na folha de pagamento – os parças dizem que o ex trabalha no Procon, e se trabalha, no dia da entrevista não deu expediente por lá.
Devia estar de licença. É bom de palavras. Ele entrou numa conversa dela, enquanto Ana procurava uma coisa para dizer, lacrando: “Modernista”. Ela rebateu “é isso aí, meu ex sabe das coisas!”
Ele também é um bom parça: “Foram três anos de namoro, agora somos apenas amigos”, conta a deputada – exibindo a aliança de noivado com outro homem, o tenente da PM Tiago Galvan, que trabalha no setor de comunicação da corporação, no QG.
O repórter pergunta se ela pegou geral depois do casamento. Ela reage na hora: “Tenho cara de peguete”? Significando um enérgico “não”.
O tenente Tiago é seu terceiro relacionamento, pra casar.
Ela conheceu o futuro marido num encontro político levada pelo seu Rasputin. Tiago deu match nela “nas ideias contra drogas, ideais políticos e para enfrentamento da bandidagem”.
Ana se dá bem com ex recente e até com o ex mais antigo, seu ex marido.
Ela exibe a foto de casamento, sem ele, e acrescenta “casei virgem”, aos 18 anos – o casar virgem é da essência do seu pensamento político conservador, que adiante conheceremos.
Ela não dá fotos do ex-ex porque o homem seria cioso de sua privacidade.
O segundo ex é o mais despojado dos três. Estava tão disponível no gabinete durante a entrevista que ela lhe pediu que fosse comprar um suco de abacaxi – Ana catou uma nota de 10 de uma bolsinha preta e o despachou na missão.
Quando o suco chegou, entrou em cena Marcos, parça mais que um chefe de gabinete: ele tomou o primeiro gole para saber se estava com açúcar ao gosto dela. Acrescentou um pouco e ela ficou satisfeita. Ana pegou o troco de 4 reais do ex e bebeu o suco.
Ela é boa em controlar dinheiro: contou que dos 16 aos 18 trabalhou numa fábrica como estoquista, economizando R$ 6 mil. Aí, deu de entrada num apê do Minha Casa Minha Vida. O imóvel hoje está alugado, mas agora, com o salário de deputada, pretende quitá-lo.
“Vai dizer que eu comprei com um plano da Dilma?”, pergunta, desafiadora. “Na época eu era bem bobinha, não sabia nada de política”, diz, como se estivesse arrependida de usar um programa do PT.
Ao falar em PT aproveita para despejar um caminhão de lixo em Dilma, “aquela masculinizada, que escolheu dois maridos podres, um bandido e um guerrilheiro” – aí exibindo seu lado colérico, não gosta nem do cabelo da ex presidente.
A rapaziada toda do gabinete se mexe bem no ritmo da chefa, entrando e saindo da sala para pequenos comunicados, mostrando-se como essencial, sempre mantendo um silêncio obsequioso durante a entrevista.
Ana Carolina nos interrompeu várias vezes para fotos com visitantes. Apareceu um pessoal que a convidou para a corrida de caminhões de Araranguá, no Sul do Estado.
Ela respondeu com um “eita porquera”, no estilo caminhoneiro, mas não parecia ter o perfil do evento. Presbiteriana e professora de História, meio que torce o nariz pro ronco de motores. (…)
Nas três horas da entrevista não surgiram mais demandas importantes para Ana Caroline, exceto pela visita do deputado federal Daniel Freitas. Esta seria só de cortesia.
Um assessor dele, cheio de rapapés, entregou-lhe o cartão e ofereceu: “Quando você for a Brasilia, mandaremos um carro oficial te buscar no aeroporto, vamos fazer belos passeios pela capital” – quem sabe quando o federal vai precisar da estadual, né?
Aproveitando um momento de ócio ela faz uma reflexão:
“Sou chata, sabe? Não gosto de praia, nem de balada, nem de música”.
Se está num ambiente com muita gente, ela disse que se sente mal, prefere ficar em casa e ler – talvez ela sofra de agorafobia, um transtorno que algumas pessoas sentem em ambientes lotados.
O parça Marquinhos estava muito satisfeito com a entrevista e achou seu instante de protagonismo. Disse que era o responsável por filtrar os papos da deputada. Explicou que também fazia “a futurologia pra ela, desenhando cenários lá na frente”. (…)
O mundo dela é o mesmo de Bolsonaro, em paralelo ao dos mortais comuns – raros contatos com a mídia tradicional, apenas seus comunicados nas redes.
Os acessos no Facebook dela são o sal da terra: “Vocês jornalistas e os historiadores querem que as coisas aconteçam de um jeito, foi isto que os derrotou nas eleições de 2018”, disse Marcos, vibrando com os acessos – o repórter não rebateu à provocação.
Marcos fala por Ana Caroline na frente dela: “Nossa pauta conservadora não é ideologia, é contra o pensamento revolucionário”.
Ele explica que uma revolução, e dá o exemplo da Francesa, “deixa tudo de pernas para o ar, sem falar as cabeças cortadas, é uma coisa violenta, contra a natureza humana”. (…)
O LIVRO DE ANA
Na entrada do gabinete de Ana há um quadro pintado pelo marido da assessora Rejane: figuras femininas seguram cabeças cortadas.
A capa do livro de Ana, “Feminismo, perversão e subversão”, tem a cabeça de João Batista, também devidamente cortada, numa bandeja.
Procurei entender as mensagens, quando a deputada gentilmente me estendeu um exemplar do livro: “Minhas ideias estão aí”.
Agradeci – e vi depois que ele custaria R$ 58 numa livraria cristã online.
A obra é uma bofetada na cara das feministas e em tudo que a civilização ocidental acumulou nas últimas décadas no quesito feminismo.
“Existem duas formas de atacar e destruir a família. A primeira é dizer que os homens não prestam. A segunda é dizer que as mulheres não prestam. O cristianismo é a solução que desvenda o problema… Para compensar, (homens e mulheres) devem amar um ao outro e perdoar infinitamente”.
De cambulhada neste pensamento vem o ser cristã, virgem, buscar um casamento casto como Kaká – enquanto que ser feminista é “a formulação completa e satisfatória dos fins da revolução sexual”, conforme citação da americana Kate Miller.
Ana escreve que “o feminismo não é a medida de todas as coisas. Nenhuma mulher precisa estudar o feminismo como uma condenada apenas para poder lançar-se contra ele, basta ser mulher.”
A deputada catarinense ataca grandes nomes da literatura universal: “Só quem pode falar alguma coisa são aquelas chicas histéricas que balançam tetas desnudas e que boicotam o emprego de depiladora, ou aquelas solteironas de meia-idade… que acusam todo mundo de complô machista…Olhemos para as feministas: Gloria Steinem era amargurada por ter que cuidar de sua mãe doente, pegou nojo da maternidade, e dizia isto com orgulho”.
Ela continua, na página 368: “Virgínia Wolff se suicidou, depois de uma vida marcada por surtos e violências. Betty Friedan não suportava o marido e odiava cuidar dos filhos. Mary Wolffstonecraft, que escreveu que nenhuma mulher deveria depender do homem, tentou o suicídio duas vezes, porque o homem que ela amava a desprezou. Depois, propôs à esposa de um outro que elas dividissem o marido”.
Nossa campeã do conservadorismo pega pesado com um casal que foi ícone de gerações: “Simone de Beauvoir entrevistou seu companheiro Sartre (Jean Paul). Ele disse, na cara dela, que transava com outras mulheres ‘por qualquer motivo’, beleza ou mera simpatia. Já que ela se dizia tão maravilhosa e independente e ele já a possuía, podia escolher outras mulheres sem nenhum critério. Além de simpatizar com a pedofilia, ela mesma arrumava garotinhas para fazerem sexo com Sartre” – por pouco não compara um dos gênios da raça com o general paraguaio Stroessner, que por 30 anos manteve um harém de meninas.
Ana dá um exemplo com sua família “cristã, tradicional e natural…mãe dona de casa…não nos sentíamos oprimidas por nenhum homem de nossa convivência…”
Ela acha que chegou ao cerne do problema (ser uma feminista de carteirinha) “vasculhando os livros das próprias feministas. Me dei conta que o teste de iniciação ao movimento era a adesão à revolução sexual”.
Na página 170, a deputada se choca com o abismo entre a vida privada e a lenda pública de um casal famoso. Cita Sartre numa carta para Simone de Beauvoir em 1934, que muita gente pode dizer que é atual e que serve para alguns: “Família é mesmo um monte de merda”.
Ela joga veneno sobre o feminismo nas 380 páginas, depois de ter lido 133 autores, citados no apêndice — sugiro dispensar o prefácio de Bernardo Kuster, jornalista não por acaso paranaense, que defende a tese de que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil está coalhada de comunistas. (…)