O que se convencionou chamar de autonomia do Banco Central, que não é independência, são as restrições impostas à direção do banco para não se meter em política, principalmente em eleição presidencial. Mas foi justamente a interferência no processo político que tem caracterizado a gestão de Campos Neto desde a mudança de governo, quando se omitiu em condenar o jogo eleitoreiro do governo anterior de tentar comprar a eleição de Bolsonaro com isenções fiscais e assistência social.
Ficou muito claro com essa omissão, relativa à política fiscal, mas com efeito na política monetária, que o BC de Bolsonaro realmente não usava sua autonomia política para cumprir seu papel constitucional. Sua direção é mesmo política, como agora atestam mensagens de celular trocadas entre Campos Neto e ministros do ex-presidente, antes e depois das eleições. Sob esse aspecto, a lei da autonomia do BC tornou-se inútil, antes mesmo de completar quatro anos de seu ciclo de vigência.
Em sua essência, a autonomia deve ser encarada como uma proteção da sociedade contra manobras políticas do mais importante instrumento de poder do Estado, principalmente em momentos de eleição. Em outros momentos a questão se reduz à condução da política monetária definida pelo Copom. É esse o ponto essencial que deve ser levado em conta numa avaliação da gestão de Campos Neto. Ele se omitiu quando sua interferência era mais necessária, “limpando” as eleições.
Entretanto, ninguém deveria se surpreender com esse tipo de comportamento do neto de Roberto Campos, o ideólogo, mais para o final de sua vida, da privatização radical na política econômica brasileira. Campos Neto foi colocado na presidência do BC para fazer o que está fazendo, e para se omitir quando não deve fazer. Foi uma das travas que Guedes colocou, junto com três outras da política fiscal, no caminho de um eventual presidente progressista, caso Bolsonaro fosse derrotado.
Já escrevi sobre as travas fiscais. Inclusive no meu recente livro, “A Economia Brasileira como Ela É”, editado pela Amazon. São elas, além do estúpido “teto de gastos”, a obsessão com a limitação dos gastos ao que se arrecada, e a realização de superávits primários. É até possível conviver com essas duas últimas, como quer Lula, mas praticamente impossível, se o objetivo for a retomada do desenvolvimento econômico sustentável, seguir a trilha completa indicada pelas travas de Guedes.
Além disso, o neoliberalismo radical de Guedes não veio sozinho. Ele já estava inscrito na Constituição de 1988, conforme o Art. 166. Segundo esse artigo, as sobras de recursos na execução orçamentária, relativas a qualquer item provisionado, devem ser aplicadas no abatimento da dívida pública, e não em outras áreas. Com isso, o eventual aumento de receitas públicas em relação às despesas acaba esterilizado por uma regra constitucional tão sem sentido quanto as outras três travas.
Com a salvaguarda desses impedimentos fiscais, e seguro de que tem mandato permanente, o presidente do BC trabalhou abertamente pela derrota de Lula. Chegou a fazer cálculos estatísticos enviados a seus aliados no governo anterior, prevendo a abstenção de parte do eleitorado lulista, de forma a tranquilizá-los sobre a vitória certa de Bolsonaro. A derrota, no contexto institucional em que ele atua, é apenas um incidente. Ele governa o Brasil através do BC como se nada tivesse acontecido.
Contudo, como se tem discutido na imprensa, o presidente do BC não é intocável. Ele e toda a diretoria podem ser demitidos. A condição é que não cumpram por dois anos seguidos as metas estabelecidas pelo Copom (atualmente, ministérios da Fazenda e do Planejamento), e que a demissão seja aprovada pelo Congresso. O custo político disso é alto. Mas não se pense que não pode ser pago. Lula provavelmente conseguiria o aval de uma grande mobilização da opinião pública nesse sentido.
O problema central, porém, a meu juízo, não é propriamente esse. Achar um novo presidente e uma nova diretoria do BC não chega a ser tão difícil. O problema é mudar a própria natureza da política monetária. Estamos completando cerca de quatro décadas sob o jugo de uma política fiscal-monetária regressiva, de especulação, que nos foi imposta com a crise da dívida externa pelo FMI, no início dos anos 1980. Ela, desde então, contaminou até a alma a alta burocracia econômica brasileira.
Para superar a economia de “especulação” e passar para um regime econômico de “produção”, como propõe o manifesto recém-lançado por um grupo de economistas progressistas, é preciso, antes de mais nada, reduzir a taxa de juros para níveis aceitáveis. Mas é preciso também mudar a política fiscal, eliminando as travas do desenvolvimento sustentável acima indicadas, herdadas do governo Bolsonaro. Sem isso, continuaremos fazendo bolsonarismo sem Bolsonaro.