Publicado no site DW.
Um dos mais tradicionais tabus das campanhas eleitorais, o tema aborto passa ao largo da discussão também na disputa presidencial de 2014. Os principais candidatos evitam o assunto ou, quando se posicionam, são invariavelmente contra. O voto de setores conservadores da sociedade – sejam eles ligados à Igreja Católica, sejam os novos evangélicos – é importante demais para que se corra qualquer risco.
Em debates, a presidente Dilma Rousseff, candidata do PT, e o ex-governador Aécio Neves, do PSDB, posicionaram-se contra mudanças na legislação com o objetivo de descriminalizar o aborto. Já a ex-senadora Marina Silva, do PSB, disse ser contra, mas propôs um plebiscito para resolver a polêmica que, segundo ela, “envolve questões éticas, filosóficas e espirituais”.
Uma polêmica ocorrida na campanha à Presidência de 2010 mostra como o tema é sensível para o eleitorado. Quando ainda era ministra, em 2007, Dilma concedera uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo se dizendo favorável à descriminalização. Em 2010, já candidata, recebeu uma série de críticas pelo posicionamento e acabou mudando o discurso.
A favor do aborto, mesmo, só candidatos de chances mínimas, como Luciana Genro, do Psol, ou Eduardo Jorge, do PV. Este até afirmou que, em 2010, o tema aborto foi deixado de lado para viabilizar a candidatura da evangélica Marina Silva pelo partido. “Não estimulamos a prática, mas não podemos ignorar essa realidade de muitas mulheres que, por algum motivo, recorrem ao aborto a cada ano”, afirmou o candidato.
Para o procurador Diaulas Costa Ribeiro, do Ministério Público do Distrito Federal, não há dúvidas de que o aborto não é descriminalizado por pressão religiosa. “Esse discurso está acomodado na sociedade brasileira, só que o tema não pode ser visto como uma questão ética ou filosófica, mas de saúde pública”, diz.
O Código Penal brasileiro prevê pena de detenção de um a três anos para a mulher que provoca propositalmente um aborto. Há exceções somente quando a gravidez representa risco à vida da gestante, em casos de estupro e de má formação fetal, como a anencefalia – ausência parcial da massa cerebral no feto.
Mas, mesmo com a proibição, uma em cada cinco brasileiras aborta ao menos uma vez na vida, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2010 pela Universidade de Brasília (UnB), em parceria com o Ministério da Saúde e a Agência Ibope, e até hoje o estudo mais representativo sobre o tema no Brasil.
O levantamento apresentou um segunda informação importante: o perfil das mulheres que abortam não tem nada de extraordinário: a maioria é casada, e há pessoas de todas as religiões e idades.
“Isso tudo, indiscutivelmente, coloca o aborto como um problema de saúde pública prioritário no Brasil. As mulheres fazem e vão continuar fazendo. Fechar os olhos para isso por uma questão religiosa e manter a interrupção da gravidez como um crime é forçar a mulher a ter um problema de saúde e não buscar ajuda”, afirma o sociólogo Marcelo Medeiros, da UnB, um dos autores da Pesquisa Nacional do Aborto.
Para os críticos da lei, criminalizar significa tirar o direito que a mulher tem sobre o próprio corpo. A proibição, somada à falta de informações e ao desespero, leva as mulheres às inúmeras clínicas clandestinas espalhadas pelo país, que não oferecem nenhuma estrutura para realizar uma cirurgia que poderia ser simples.
O mais recente caso de repercussão na mídia aconteceu no final de agosto. O corpo da assistente administrativa Jandira Magdalena dos Santos, de 27 anos, foi encontrado carbonizado dentro de um carro na região de Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro. Grávida de 3 meses e meio, ela estava desaparecida desde que havia sido levada para uma clínica de aborto clandestina.
Quando a mulher sobrevive a um lugar como esse, pode ainda sofrer com hemorragias e frequentemente precisa de atendimento médico de urgência num pronto-socorro. Mas, com medo de relatar a um médico que fizeram um aborto, elas acabam não procurando ajuda, o que pode resultar em infecções e, em casos mais graves, perda total do útero.
“O problema é a criminalização, porque, do contrário, as mulheres teriam como ser atendidas pelo SUS e não passariam por nada disso. Camisinhas falham, métodos contraceptivos falham. Ninguém faz aborto porque quer. As mulheres optam por isso em circunstâncias de pressão muito grande”, afirma Medeiros.
O número de internações pós-aborto é muito elevado, o que revela mais uma vez a necessidade de uma política pública. De acordo com a pesquisa, cerca de metade dos casos de interrupção da gravidez acabou em internações – o que também gera mais gastos para o governo.
Curiosamente, a descriminalização do aborto não deixa de ser uma medida contra o aborto. “Se as mulheres tivessem a oportunidade de dialogar com um profissional, muitas não abortariam. Elas fazem pela solidão da decisão. É incrível que um país que já não pune mais com prisão o uso de drogas, porque chegou à conclusão que essaé uma questão de saúde pública, continue insistindo nessa tese de punir criminalmente a prática do aborto”, diz.
O Uruguai optou por outro caminho. Lá, a descriminalização do aborto é fruto de um longo e original processo centrado na luta contra a mortalidade materna. Em 2012 foi aprovada a Lei de Interrupção da Gravidez, dando à mulher o direito a um atendimento médico dentro da legalidade e seguro até a 12ª semana de gestação.
No último balanço divulgado pelo governo, aproximadamente um ano depois da decisão, mais de 6.676 abortos seguros foram realizados no país sem o registro de nenhuma morte. Em apenas 50 casos houve o relato de complicações leves, que puderam ser tratadas.
Com a legalização do aborto, o número de mulheres que fazem o procedimento caiu, chegando a nove interrupções a cada mil mulheres – o que coloca o Uruguai entre os países com as menores taxa de aborto do mundo.
Uma das razões pode ser o procedimento pelo qual a mulher é obrigada a passar para poder abortar. Ela deve primeiro consultar um ginecologista, um psicólogo e um assistente social e depois deve respeitar um prazo de cinco dias de reflexão. Nesse caminho, muitas desistem.
“No Brasil, os políticos estão sendo omissos, abrindo mão de suas ideias para ganhar uma eleição. Quem pagará o preço por isso são as próprias mulheres”, afirma Medeiros.
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