Publicado originalmente no Universa
Por Maria Carolina Trevisan
O Brasil alcançou neste sábado (10) a marca das 150 mil vidas perdidas para a covid-19. Também chegamos a mais de cinco milhões de pessoas infectadas pelo coronavírus. A pandemia levou vidas de todas as classes sociais. Mas a morte se impôs principalmente sobre os mais pobres, mais vulneráveis e negros, como mostrou uma pesquisa do IBGE publicada em junho: pretos e pardos representam 57% dos mortos pela doença. É a consequência da falta de estrutura e de acesso à saúde (especialmente às UTIs). Nestes oito meses, a covid-19 nos mostrou, sobretudo, que somos um país extremamente desigual.
A desigualdade é tão aguda e sua prevalência sobre a população negra é tão evidente que os R$ 600 do auxílio emergencial foram capazes de tirar temporariamente da pobreza extrema mais de 8 milhões de pessoas negras, sobretudo mulheres. Diante dessa realidade escancarada pela pandemia, a ajuda emergencial se refletiu na popularidade de um presidente que nada fez para conter a doença. Inclusive, Jair Bolsonaro (sem partido) sequer defendeu o repasse de R$ 600. Essa foi uma conquista imposta pelo Congresso, que fique claro neste novo marco de 150 mil pessoas perdidas. Complexidades deste país desigual fazem com que, agora, o presidente necessite desse apoio que ele não quis conceder.
Em termos sanitários, Bolsonaro se empenhou em estimular aglomerações (balanço mostra que até 17 de maio esteve em uma aglomeração por dia), desencorajou medidas simples de proteção, como lavar as mãos, usar máscaras e manter distanciamento, desdenhou de quem adoeceu de maneira severa (falou em “gripezinha” e citou seu “histórico de atleta”, em março), negou a gravidade da pandemia (“não sou coveiro”, disse, ao ser perguntado sobre o número crescente de mortes) e desrespeitou a dor das famílias cujos entes queridos nem puderam ser velados (“e daí?”).
Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde e manteve um interino por quatro meses, que não foi transparente, não orientou a população, defendeu a cloroquina sem comprovação de eficácia, e está confuso sobre a vacina. Aliás, até ser convidado ao cargo, o general Eduardo Pazuello confessou que “nem sabia o que era o SUS”. Mas o presidente, em campanha, prometeu perfis técnicos para seus ministérios. Entregou militares.
Esse desleixo –uma aposta do presidente Bolsonaro– impôs riscos, custou vidas e alongou a pandemia no Brasil. Trouxe também um constrangimento mundial ao país e deve ter como consequência uma crise econômica profunda, com altas taxas de desemprego. Enquanto isso, o ministro Paulo Guedes (Economia) até hoje não sabe como financiar um programa de transferência de renda.
Nesse período da pandemia, Bolsonaro não se preocupou em unir o país –não adianta agora assistir ao futebol com o ministro do STF Dias Toffoli e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), para se mostrar zelador da harmonia entre os Poderes. Bolsonaro nunca buscou harmonia durante os meses mais difíceis para a população do país que governa. Agiu para desestabilizar e descredibilizar quem quis proteger as pessoas.
Agora, Bolsonaro desfruta do “eu avisei” para justificar que a economia precisa ser retomada, como se tivesse gerido a crise sanitária e econômica com competência. É uma estratégia e tanto, afinal, não havia como passar pela pandemia sem consequências ruins na área econômica.
A falta do abraço
Na etapa atual da pandemia, passados tantos meses, precisamos cuidar das consequências da falta do abraço. Porque o brasileiro é assim: a gente se abraça, se encosta, se toca, cumprimenta todo mundo com beijos. Não dá mais para evitar o abraço, ainda mais porque somos um país em luto. A falta que o abraço faz aqui não é a mesma para o resto do mundo. Estamos aprendendo a abraçar com máscara, adotando outros cuidados. Mas precisamos voltar ao abraço. Sem esse gesto tão nosso, não nos reconhecemos. Perdemos identidade. Não sabemos quem somos.
Se juntarmos a isso as consequências da péssima gestão da crise sanitária pelo governo Bolsonaro, observamos também um povo inseguro e desconfiado, fruto do abandono de seu líder. Precisamos, enquanto país, nos preparar para acolher o sofrimento psíquico, o pânico, a ansiedade, a depressão, as dores da alma, que podem durar por muito tempo e deixar marcas para sempre na vida de muita gente.
O Estado deve se reorganizar para lidar com as camadas de complexidade próprias do nosso país: as sequelas da falta do abraço e as consequências do fim do auxílio emergencial, que levará um terço do país à pobreza. A partir de 2021, se nada for feito, 66,2 milhões de pessoas passarão a viver com menos de US$ 3 ao dia, com impactos mais fortes nas regiões Norte e Nordeste, justamente onde Bolsonaro teve a popularidade anabolizada pelo auxílio.
É a fome que se avizinha, grande temor que nos ronda. A “luz amarela para fome no Brasil foi acesa” devido “à regressão das políticas sociais”, disse à BBC o economista Daniel Balaban, representante para o Brasil do PMA (Programa Mundial de Alimentos), programa da ONU de combate à fome que acaba de ganhar o Nobel da Paz. Esse cenário social, psíquico e econômico, a postura de Bolsonaro na pandemia e a descontinuidade de políticas sociais em seu governo, a inabilidade da equipe ministerial e a incompetência para a articulação política podem custar ao presidente a sua tão almejada reeleição.
Angústia, receio, desesperança, tristeza, cansaço, desespero, são algumas das sensações citadas pelos leitores do UOL em enquete do @UOLNotícias no Instagram. O administrador de empresas Marcos Machado Lacerda, 39 anos, pai de uma menina de dez que faz parte do grupo de risco, só conseguiu abraçá-la duas vezes neste ano, no Dia dos Pais e no aniversário dela, ambos usando máscaras e conversando à distância.
“Eu sinto muito a falta do contato físico com ela. Vejo que ela também sente”, relata. Saudoso, Marcos achou um jeito de manter a convivência física e segura. “Meu coração está bem apertado. A única forma que encontrei de não perder o contato direto com a minha filha foi essa. Como ela mora com a mãe no primeiro andar, eu passei a ir lá pelo menos duas ou três vezes na semana. E aí a gente fica conversando pela janela”, contou. Um abraço pela janela. A força do amor é infinita.
*Colaborou Carolina Marins