Sou nordestina mesmo. Com direito a sotaque arrastado e tudo. Não tenho cara de cidadã francesa, falo “oxente” todo dia e não me considero nem um pouquinho menor do que esses sulistas metidos a besta que têm depreciado a origem cearense da Miss Brasil recém eleita e o povo nordestino como um todo.
E não é de hoje que me enojam esses episódios de injúria virtual contra o povo de minha terra.
Só esperei, roendo as unhas, um momento em que a oportunidade pudesse me presentear com a atenção de vocês, já que, inevitavelmente, todo esse preconceito nojento seria algum dia inescrupulosamente destilado em rede nacional. E o foi, infelizmente.
O sangue nordestino que me corre nas veias – deste povo acolhedor e cheio de amor pra dar – não me deixaria responder a estas ofensas com outras ofensas. Basta-me, entretanto, responder com as maravilhas que o meu povo tem, que só tornam mais cristalina a repugnante ignorância daqueles que depreciam o povo nordestino. Pois bem.
Sou o nordeste de Gonzaguinha e de Gonzagão, que nos representam muito mais e muito melhor que as cantoras francesas apreciadas por estes tantos brasileiros desabrasileirados.
O Nordeste de Jorge Amado e Gregório de Matos. Sou o nordeste de Tom Zé, cuja genialidade talvez não se adeque à mediocridade das mentes pequenas dessa gente que diz que não temos nada de valioso.
A impressão que tenho é que todo esse ódio irracional de alguns brasileiros contra outros decorre da ideia de que a própria brasilidade, em seu sentido mais íntimo, é motivo de negação.
Quando vejo sulistas – muitos deles moradores de lugares, ao seu ver, com cara de Europa – falando, aos quatro ventos, que “pensava que no Nordeste só havia gente feia”, penso no quanto estas pessoas precisam, urgentemente, se aceitar enquanto povo brasileiro.
Sou o Nordeste de Raul Seixas. É, Raulzito, que prefere ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. O cara das canções imortais entoadas por um monte de sulistas preconceituosos metidos a besta que falam mal do nordeste nas redes sociais sem sequer desconfiar a honrosa origem de seu ídolo.
Aprender a gostar da própria cultura, das próprias raízes, compreender que o povo nordestino – que tanto julgam feios, pobres, ignorantes e inferiores – são, também, o retrato da brasilidade que tanto lhes diz respeito, embora dificilmente compreendam.
E que nossa cultura, nossa música, nossos artistas conterrâneos e nosso povo têm um valor imenso e invisível aos olhos de brasileiros pseudoeuropeizados e cegos pela ignorância.
Por que, lamentavelmente, o Brasil está para o mundo como o Nordeste está para o Brasil: subjugado e inferiorizado, mas que guarda uma riqueza cultural (e de muitas outras ordens) incomensurável.
É como se o povo brasileiro que se coloca neste lugar de superioridade em relação aos nordestinos não enxergasse como o mundo os coloca em um lugar de inferioridade enquanto brasileiros. E o quanto negar isto não vai resolver nada.
E se não compreendem isto, e tampouco se aceitam como povo brasileiro, que parem de destilar isto nas redes sociais como se fosse natural.
Que guardem para si o intragável sentimento de superioridade até que ele dê conta de enforcá-los. Por que o preconceito tem muitas faces, todas elas abomináveis. E, principalmente, por que quem não se aceita, uma hora precisa se engolir a seco.
E para todo aquele que, de alguma forma, já sentiu-se preconceituoso em relação a qualquer canto do Brasil – ainda que, por vergonha ou covardia, não o tenha demonstrado, meu recado é apenas um, com o sotaque baiano do qual não abro mão: assumam o samba, assumam o sangue negro, assumam essa brasilidade, por vezes, tão nordestina.