Por Manuel Domingos Neto
Em Curitiba, Lula disse não entender a indisposição dos militares consigo, já que havia atendido suas reivindicações.
Os pleitos eram cabíveis? Ajudariam a autonomia brasileira em Defesa? Atenuariam a hipertrofia da Força Terrestre? Ampliariam a capacidade aeronaval? Reduziriam a gastança com o funcionalismo fardado?
Era como se Lula dissesse: satisfiz e satisfarei vossas vontades! Custei a crer que, na cadeia, assinasse mais uma “Carta aos Brasileiros” direcionada ao militar.
Ao longo de sua trajetória, diversos compromissos deste teor foram assumidos de viés. Lula iniciou seu primeiro mandato sem dar rumos à Defesa. O ministro Viegas tentou abrir o debate, mas oficiais lotados em sua equipe definiam quem seria ouvido.
A primeira “carta ao militar” de Lula foi a Política de Defesa Nacional de 2005, que desfez tímido avanço do governo FHC quanto ao papel das corporações. Em 1996, o governo do PSDB estabelecera:
“A Política de Defesa Nacional, voltada para ameaças externas, tem por finalidade fixar os objetivos da defesa da nação, bem como orientar o preparo e o emprego da capacitação nacional, em todos os níveis e esferas de poder, e com o envolvimento dos setores civil e militar.” (Os negritos são meus)
Essa definição vedava possibilidade de a Defesa lidar com “inimigo interno”. Mencionava a “capacitação nacional” sem definir protagonismo às Forças Armadas. A dicotomia “setores civil e militar”, mesmo imprecisa, excluía o ditame castrense.
Diferentemente, a Política de Defesa Nacional assinada por Lula em 2005, consignou a “ênfase na expressão militar” e admitiu a atuação doméstica ao incluir as palavras “ameaças preponderantemente externas”:
“Defesa Nacional é o conjunto de medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas.” (Os negritos são meus)
Oficiais pontificaram na redação deste documento. O primeiro item explicitava que o Estado deteria “o monopólio legítimo dos meios de coerção para fazer valer a lei e a ordem”. A ideia de “segurança” foi apresentada como resultante do desenvolvimento social, sem remessa à proteção da cidadania contra a violência do Estado, destacada na Carta de 1988. O combate ao “inimigo interno” foi apresentado como novidade, um jeito de encobrir dois séculos de repressão aos insatisfeitos. Lula endossou a noção de “segurança” em vigor durante a ditadura militar, que abarcava todos os “campos” da vida social:
“Nos primórdios, a segurança era vista somente pelo ângulo da confrontação entre Estados, ou seja, da necessidade básica de defesa externa. À medida que as sociedades se desenvolveram, novas exigências foram agregadas, além da ameaça de ataques externos. Gradualmente, o conceito de segurança foi ampliado, abrangendo os campos político, militar, econômico, social, ambiental e outros. Entretanto, a defesa externa permanece como papel primordial das Forças Armadas no âmbito interestatal.” (Os negritos são meus)
A platitude de que, “entretanto”, nas relações interestatais, a defesa externa permaneceria como papel primordial das Forças Armadas, confirma a prioridade das “ameaças internas”. Tratava-se, naquelas circunstâncias, de acompanhar formulações do Pentágono acerca de “novas ameaças”, entre as quais se incluíam organizações criminosas e terroristas.
Na época, o constrangimento provocado pelas denúncias de compra de votos de parlamentares pelo PT pode ter contribuído para o retrocesso na formulação da Defesa Nacional.
Lula não proveu o Ministério da Defesa de corpo civil especializado e pouco fomentou estudos pertinentes. Universidades foram criadas, nenhuma delas orientada para contribuir com uma política indispensável à soberania do Brasil. Lula permitiu que o militar aprofundasse seus vínculos com Washington e agisse conforme crenças amanhadas na “Doutrina de Segurança Nacional”. Sacrificou o ministro Viegas. Desenvolveu política externa descolada dos assuntos de Defesa. Aceitou o excesso de tropa e seu uso em operações domésticas. Autorizou missões de paz desavisado de suas consequências. Não providenciou instrumentos alternativos para preservar a lei e a ordem. Governou feito refém do castro, sendo sacudido, no segundo semestre de 2006, pelo “apagão aéreo”.
A crise ensejou maior atenção ao papel do militar. O governo estabeleceu uma Estratégia Nacional de Defesa que considerou a projeção do país no cenário internacional. Mas o Ministério persistiu sem corpo civil e os “programas estratégicos” foram formulados conforme venetas corporativas.
Em 2012, Dilma Rousseff manteria a mesma definição para a Defesa, estabelecida no primeiro mandato de Lula. Atendeu à vontade do militar, mas o irritaria com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, mesma época em que a Academia Militar de Agulhas Negras permitia que Bolsonaro discursasse aos jovens aspirantes ao oficialato.
O ativismo político do militar cresceu. Em 3 de abril de 2018, o comandante do Exército mandou mensagem cifrada ao STF dizendo que queria Lula preso. Quatro dias depois o maior líder popular da história brasileira se entregaria ao carcereiro.
O ativismo castrense fugira dos parâmetros conhecidos, mas não perdera o norte: a construção de um país digno do quartel que se vê expressão máxima da nacionalidade. O PT permitiu ao militar fazer o que sempre fez: agir como “poder nacional”, algo superior ao poder do Estado.
Rodrigo Lentz, analisando a sobrevivência da Doutrina de Segurança Nacional, assinalou a autonomia deste “poder”, que agasalha a ideia do militar como operador da consecução dos “objetivos nacionais”. Rodrigo conclui: tal pensamento revelaria “a permanência da insubordinação como horizonte”, um recibo da mentalidade autoritária.
Os governos do PT deixaram a Defesa nas mãos dos comandantes. Executivos públicos, juízes, promotores e responsáveis pela Segurança Pública isentaram-se de obrigações neste domínio. Partidos políticos não mostraram ideias consistentes para a Defesa. Comissões parlamentares curvaram-se diante de generais ávidos de verbas e vazios de planos convincentes.
Assumindo o terceiro mandato, Lula manda outra “carta ao militar” ao admitir arruaceiros golpistas nas calçadas dos quartéis. Buscou o “apaziguamento” quando estava no auge da legitimidade e as fileiras, desorientadas. Sem mostrar autoridade, obteve em resposta, no oitavo dia de mandato, o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes. Forçado, mudou o comandante do Exército. Forçado, muda agora a chefia do GSI.
Hoje, os generais administram perdas e danos pelo envolvimento de militares na baderna golpista. Lula persiste “apaziguando”: comemora o “Dia do Exército”, ritual enaltecedor da índole colonial da corporação e exalta o “Exército de Caxias”, expressão que legitima as intervenções domésticas da Força.
Soam as trombetas da guerra, cabe ao Estado preparar as fileiras. Entregues ao próprio talante, a tropa não protegerá o Brasil nem sossegará a cidadania.
Que tal, general Tomás, solicitar ao Presidente uma Conferência Nacional de Defesa? Enquanto as autoridades pertinentes incriminam golpistas, a Defesa do Brasil e uma consequente reforma militar seriam posta em pauta. Que tal, mudar o rumo da prosa?