Publicado na ConJur
Por Lenio Luiz Streck
Já pertinho da eleição e lá vem a Procuradoria da Fazenda Nacional fazer um último lance: depois de espiolhar a tese de que a anulação de processo não torna uma pessoa inocente, ingressa com ação fiscal contra o ex-presidente Lula (ver aqui a decisão do ministro Gilmar Mendes). De pronto, cabe perguntar: quando uma ação penal prescreve, por exemplo, o réu é culpado? Ou fica em estado de inocência? Quando um processo é anulado, qual é o estado judicial do acusado? De que modo uma autoridade pública como o procurador da Fazenda Nacional não sabe disso? Ou sabe?
A ação movida pela PGFN trata de uma suposta confusão patrimonial entre o Instituto Lula e o reclamante (o próprio Lula), desde que este deixara a Presidência da República. Fundamento da ação: provas compartilhadas por Sergio Moro (expediente nº 5011077- 59.2016.4.04.7000/PR).
Ocorre que essa prova faz parte de processo anulado e cujo juiz foi considerado suspeito. A anulação foi dupla. O Supremo Tribunal Federal anulou o processo.
Logo, as provas são ilícitas. E a Constituição veda o uso de provas ilícitas contra o réu (nunca veda quando usadas a favor do réu, lembremos — conforme aprendemos no primeiro ano da faculdade).
Como disse o ministro Gilmar na decisão concessiva da cautelar na reclamação deferida no dia 27 de setembro último:
“Não há dúvidas, portanto, que, em decorrência do reconhecimento da parcialidade do ex-Juiz Federal Sergio Fernando Moro, o Supremo Tribunal Federal invalidou todas as decisões proferidas no âmbito da ação penal 50465-94.2016.4.04.7000/PR, o que naturalmente conduziu ao esvaziamento do acervo probatório produzido a partir de deliberações do referido magistrado” (fl. 12)
Mas, na contramão do direito, disse a Fazenda Nacional:
“Por fim, o STF não inocentou o réu Luiz Inácio Lula da Silva. Ele não tratou do mérito da condenação. Não foi afirmado, em hora nenhuma, que o réu é inocente, mas considerou-se que não cabia à Justiça Federal do Paraná julgá-lo naqueles processos específicos. Para o STF, a sentença dada no Paraná foi irregular e, por isso, inválida” (fl. 19)
Na decisão, respondeu o ministro Gilmar:
“A distinção entre ‘sentença irregular’ e ‘inocência’, tecida pelo incauto parecerista, é de cristalina leviandade. Tal manifestação do procurador da Fazenda Nacional, encampada parcialmente pelo ato reclamado, ostenta nítidos contornos teratológicos e certa coloração ideológica. Quanto não demonstra, antes, alguma fragilidade intelectual, por desconsiderar algo que é de conhecimento de qualquer estudante do terceiro semestre do curso de Direito: ante a ausência de sentença condenatória penal qualquer cidadão conserva, sim, o estado de inocência” (fl. 19).
Foi até generoso o ministro, ao dizer “certa carga ideológica”. Foi comedido nas críticas, por assim dizer, levando em conta a obviedade das circunstâncias.
De todo modo, o que importa é falar do papel do direito na democracia. E do lawfare. O que a PGFN fez foi isso: uso político do direito contra um adversário. Por isso a crítica do ministro sobre “certa carga ideológica”. Simples assim. Afinal, bastava um olhar um pouco mais detalhado para saber que a decisão do STF anulou os processos. E assim as provas não mais podem ser usadas. Aliás, isso tudo já está decidido. Basta ver que do nada nada restou.
Difícil para a Procuradoria da Fazenda entender isso? E por que trazer isso às vésperas da eleição? Talvez tenha seguido a lição do ex-juiz Moro, que às vésperas da eleição de 2018, “soltou” o famoso depoimento de Palocci, aliás, umas das dezenas de versões da delação nunca terminada do ex-ministro.
É isso. Prova ilícita é prova ilícita. Lembro de que fui o primeiro a denunciar o uso de prova ilícita contra o ex-presidente Temer. Quem tem contra si o braço punitivista do Estado sabe o valor das garantias. Temer sabe disso. Lula sabe disso.
Mas quem deveria saber, mesmo, é o Estado brasileiro. E seus agentes.