Celso Amorim: “Meu amigo, o indispensável Samuel”

Atualizado em 29 de janeiro de 2024 às 23:37
Samuel Pinheiro Guimarães Neto. Foto: Divulgação

Por Celso Amorim

“Não sou capaz de falar apenas sobre o lado político do Samuel. Fomos amigos de 60 anos. A experiência mais intensa foi, certamente, no Itamaraty, a partir do início do governo Lula. Fui chamado pelo presidente para o cargo de ministro. Convidei, naturalmente, com autorização presidencial, o Samuel, para que fosse o secretário-geral do Itamaraty. Foi uma peça fundamental – em vários aspectos – na defesa dos ideais do que eu chamava de “uma política externa independente, ativa e altiva”. Muita gente diz que era um trio: eu como ministro, o Samuel secretário-geral e o Marco Aurélio Garcia na função que tenho hoje, de assessor especial do presidente Lula.

“Eu exercia o trabalho do diplomata, do ministro mesmo, que viaja, participava mais intensamente de reuniões — e era o negociador. O Samuel tinha que administrar internamente a política externa, não só dentro do próprio Itamaraty, mas coordenando-se com outros órgãos. A capacidade dele era imensa, tão grande quanto a devoção à tarefa. Se eu, como ministro, suscitasse uma questão qualquer, ele dava o passo interno. Reunir os secretários executivos de todo o governo para discutir aquela questão e as ações possíveis. Era algo que eu não podia fazer, estava viajando. Estava no Irã, num dia, no outro dia na Turquia. Ele agia internamente. E o Marco Aurélio era a pessoa que tinha o ouvido do presidente mais próximo.

“Marco Aurélio, além disso, tinha muita experiência política e muitos contatos pessoais, extremamente importantes, em toda a Europa e América Latina. Havia a percepção de que, quando ele conhecia, era uma espécie de alter ego do presidente. Nós vencemos com extraordinária harmonia.

“Friso, porém, que o Samuel foi absolutamente indispensável porque somava, a este lado de articulador, o de intelectual. Isso está refletido nos livros preciosos que ele escreveu sobre o contexto das lutas que travávamos. Falo de Quinhentos anos de periferia e de Desafios na era dos gigantes, principalmente. Mas esta produção vasta do Samuel combinava-se com uma humildade intelectual rara e uma notável capacidade de diálogo. Escrevia artigos profundos com frequência – mas sempre os enviava a um grande grupo de amigos e conhecidos, pedindo sugestões e críticas.

“Devo dizer que antes disso, o Samuel já desempenhou um papel importante na luta contra a ALCA. Esta batalha envolveu inclusive o sacrifício da própria situação funcional dele. O governo FHC não tolerou sua dissidência. Foi exonerado do cargo de diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI) do Itamaraty. Mais tarde, já no governo do presidente Lula, essa experiência e coragem seriam indispensáveis ​​para defendermos com muita segurança os interesses brasileiros nas negociações do tratado – o que acabou inviabilizando a ALCA, porém, sem romper com os Estados Unidos. Embora tenha também ótima relação com o chanceler Mauro Vieira, recordo-me com saudade desse período, muito fértil de realizações. Foi quanto consolidamos o Mercosul, tivemos a UNASUL, criamos os BRICS e o Ibas.

“Vale notar outra característica do Samuel: sua impressionante dedicação ao serviço público. Talvez haja algum outro servidor público tão dedicado. Mas ninguém foi mais do que ele. Esta dedicação absoluta à causa pública e esta firmeza na defesa das ideias, contudo, não o impediu de conciliar – quando era necessário, politicamente, para alcançar um objetivo maior.

“Nós dois entramos para o Instituto Rio Branco um pouquinho antes do golpe de 64. Nem eu, nem ele teria sido diplomata se o golpe tivesse ocorrido um ano antes. Tínhamos participação política distinta, mas ativa. Eu estava mais ligado ao cinema, ao Centro Popular de Cultura da UNE. O Samuel atuava fortemente no Centro Acadêmico Cândido de Oliveira – o CACO, da então Faculdade de Direito do Rio de Janeiro (mais tarde, UFRJ), um espaço efervescente de luta política no período de João Goulart.

Samuel Pinheiro Guimarães (à esquerda) e Celso Amorim em Amsterdã, em 1983. Foto: Reprodução

“Veio o golpe e isso de certa forma nos acordou. Eu passei um tempo no exterior, com uma bolsa. Acabei de enviar um convite do Samuel para que trabalhássemos juntos, com o embaixador Paulo Nogueira Batista – o pai – que coordenava a área de planejamento do Itamaraty. Na época, apesar da ditadura, havia uma certa abertura na política externa para o próprio Paulo. Estamos um pouco atrasados, por causa das estatísticas. Cada um tomou o seu boato. Fomos para o estudo exterior. Ele, mais economia; eu estudei política. Anos mais tarde, encontramos numa segunda experiência de planejamento no Itamaraty, na época do ministro Azeredo da Silveira.

“Em seguida a essa experiência, fui nomeado presidente da Embrafilme, já no governo Figueiredo, dentro de um processo de abertura. Convidei o Samuel para ser o diretor financeiro, que, na prática, era o vice-presidente. Fui demitido por causa de compromissos em favor do filme ‘Pra frente, Brasil’, de Roberto Farias. Falava da ditadura, de tortura. O regime não suportou. O Samuel teve que sair também.

“No post-ditadura, o Samuel foi trabalhar na divisão do Itamaraty que cuidava da integração latino-americana, anterior ao próprio Mercosul. Eu trabalhei com o Renato Archer no Ministério da Ciência e Tecnologia, onde também trabalhou, aliás, o Mauro Vieira, atual ministro. O Samuel teve um papel muito grande na criação do Mercosul. Fazia reuniões imensas, com muita gente, tinha uma capacidade de congregação única. Chamava personalidades e funcionários dos mais variados setores.

“O Samuel vai fazer uma enorme falta. Foi um elemento fundamental para a política externa em vários momentos, mas sobretudo, nos dois mandatos do presidente Lula. Uma pessoa de valor extraordinário, que resolveu situações difíceis nas lutas pelo cinema nacional, a integração sul-americana, a independência econômica do Brasil e da América do Sul. Estou triste e emocionado com sua perda.”

Originalmente publicado no Outras Palavras
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