Um homem tímido, trabalhador, prestativo, que aos 72 anos de idade realizava o sonho de voltar a morar na roça. Pai de oito filhos. Companheiro. Elogios e palavras carinhosas não faltam quando os moradores do Acampamento Marielle Vive, localizado em Valinhos (SP), falam sobre Luís Ferreira da Costa – morto há 100 dias, vítima de um atropelamento criminoso quando participava de uma manifestação pacífica.
O caso ocorreu em 18 de julho no quilômetro 7 da Estrada do Jequitibá, onde Luís e outros acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) faziam um protesto pedindo água no acampamento, mas deixando o trânsito fluir e distribuindo alimentos e sementes aos motoristas – quando o vendedor Leo Luiz Ribeiro, dirigindo uma caminhonete Hylux L-200, avançou propositalmente sobre a manifestação e atingiu Luís. O assassino foi preso no mesmo dia.
Do luto à luta
Meses após o atropelamento, amigos e vizinhos de seu Luís ainda têm dificuldade em falar do episódio, ao qual se referem como “o acontecido” ou “aquele dia”.
“Estávamos entregando sachês de sementes com o que tínhamos produzido aqui. Era simbólico. Ele estava com a mão cheia de sementinha, estava indo entregar, foi a hora que aconteceu tudo aquilo”, recorda Sueli Alves Moreira, de 55 anos.
Sentada ao redor de uma mesa localizada entre o seu barraco e os de outros acampados, improvisando uma sala coletiva, ela conta que Luís costumava sentar ali para almoçarem juntos. “Era assim, como estamos aqui hoje… O duro é que não temos mais ele. A falta é muito grande”.
Assim como Marielle Franco, executada no Rio de Janeiro em 14 março de 2018, o pernambucano nascido no sertão do Cariri também foi assassinado por lutar por direitos e se tornou símbolo.
“Reunimos força e estamos mais firmes, mesmo com a ausência dele. Encontramos força nisso. Não pode ser em vão. Ele é o que inspira mais ainda nossa luta”, diz Sueli.
Legado
Criado um mês após o assassinato de Marielle, em 14 de abril de 2018, o acampamento que leva o nome da vereadora é construído coletivamente. Grande parte do que existe hoje contou com a ajuda de seu Luís, que trabalhou como pedreiro por toda a vida.
Segundo o MST, o terreno tem pouco mais de 130 hectares e abriga 2.400 pessoas, mais de mil famílias.
“Tudo tem a mão dele aqui”, afirma Aparecido Barbosa Sarmento, um dos coordenadores do núcleo de infraestrutura do acampamento.
O senhor de 67 anos relata que seu Luís chegou de mansinho e ganhou a confiança de todos do movimento. Quando as tarefas do dia chegavam ao fim, os dois costumavam tomar café perto de onde Luís cultivava uma horta.
“Hoje passamos lá e não vemos nada. Chegávamos no final de semana e sempre, a tardezinha, estávamos ali, batendo papo. Hoje é só o cachorrinho dele que nos acompanha… Agora, todo mundo cuida. Vamos andando e o cachorro vai junto. Parece até que está caçando ele”, diz Aparecido.
Além do cultivo de legumes, frutas e hortaliças que cada acampado tem em seu quintal, o Marielle Vive está organizando espaços coletivos de produção. A preparação de um sistema agrícola em forma de mandala, que receberá mais de seis mil mudas de hortaliças, 160 pés de bananeira e outras plantas nativas, é a grande prioridade do acampamento.
“Tenho certeza que se hoje [Luís] estivesse aqui, seria linha de frente da produção. Era uma peça chave que não podíamos ter perdido”, lamenta Aparecido.
“Ele jamais será esquecido. Jamais. Somos uma família. Da nossa memória ele não vai sair. Pode ver com qualquer companheiro, o primeiro nome que se grita é ‘seu Luís’. E a molecada responde: ‘presente, presente, presente’. Isso pra eles que são crianças… Tenho certeza que daqui 30 anos, se chegar e perguntar quem foi o seu Luís, eles vão saber explicar”.
Já Antônia Vieira Santos, primeira mulher a participar do núcleo de infraestrutura ao lado de Luís, o define como “um senhor jovem”. Segundo ela, Ferreira trabalhava com mais disposição do que muitos homens mais novos.
A serenidade para lidar com as adversidades do dia a dia no acampamento é uma das qualidades que Antônia mais admirava em seu companheiro. Ela afirma que no dia seguinte ao assassinato, o primeiro caminhão de água enviado pela prefeitura chegou ao acampamento.
“Seu Luís representa cada gota de água que vai pra cada um de nós aqui. Até hoje eu não consigo esquecer daquele dia. Ele nunca desistiu e nós também não vamos desistir. Somos companheiros. É um pelo outro”.
“Eu sou guerreiro”
Próximo a entrada do acampamento, há um espaço com diversas salas onde ocorrem reuniões, cirandas, aulas na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) e diversas atividades culturais.
Era lá que Luís realizava outro sonho: aprender a escrever. A professora Cícera Alves Bezerra diz que “ele era uma pessoa que realmente queria aprender, não faltava nenhum dia”.
Professora mostra o diploma de Seu Luis, que se alfabetizou depois dos 70 anos. (Foto: Lu Sudré)
“Na véspera do acontecido, estávamos formando frases com as sílabas ‘gue’ e ‘gui’. Jogamos algumas palavras e ele formou a frase: ‘Eu sou guerreiro’. ‘Eu vou pra guerra’. E na outro dia veio o acontecido, o assassinato dele. Chocou muito a gente. Quando voltamos aqui pra sala, as frases ainda estavam na lousa. Foi muito emocionante”, conta a professora.
Assim como outros acampados, o idoso de 72 anos era ensinado pelo método cubano para alfabetização de adultos “Sim, eu posso”.
Na sala de aula, cenas voltam à cabeça da professora.
“Todo dia, no fim da aula, falávamos a palavra de ordem: ‘Sim, eu posso ler e escrever. Essa é uma conquista do MST’. E ele não conseguia fazer o ritmo e a gente ria muito. Quando ele estava começando a ingressar no ritmo, acabava”, diz, com um sorriso.
O pernambucano semianalfabeto não poderia imaginar que sua força e dedicação seriam eternizadas no Marielle Vive. O local que ajudou a construir e onde aprendeu a escrever seu nome passará por melhorias e se chamará Escola Popular Luís Ferreira. A inauguração está prevista para 2 de novembro, com a presença de Monica Benício, viúva de Marielle.
O objetivo é que o espaço continue a promover diversas atividades vinculadas à luta pela reforma agrária, assim como cursinhos populares, EJA, reforço escolar, aula de idiomas, ciranda infantil e oficinas.
Muito além da terra
Em um ano e seis meses de ocupação, os sem-terra conseguiram desenvolver dezenas de atividades coletivas que vão além da produção agroecológica e sem veneno. No Marielle Vive há espaço para auto-organização LGBT, auto-organização de mulheres, grupos culturais, discussões políticas e atividades lúdicas para as crianças.
Luciano Pereira da Silva, por exemplo, é um dos coordenadores da frente LGBT do acampamento. Ele se orgulha de seu barraco, construído com muito esforço desde o início da ocupação, onde há plantas e flores por todos os lados.
Seu objetivo é conseguir cultivar a terra e criar uma floricultura, para que outros acampados e pessoas de fora também possam enfeitar suas casas.
“A luta pela terra caminha junto com a luta contra a LGBTfobia, contra todos os tipos de preconceitos no acampamento, como racismo e o machismo. Estamos fazendo essa construção pra acabar mesmo. Inclusive com piadinhas de mau gosto. Queremos demolir isso aqui dentro”, diz Luciano.
A Frente de Cultura e Esporte, coordenada pelos jovens do acampamento, garante atividades para todos os moradores. A futura Escola Popular Luís Ferreira recebe aulas de músicas, aulas de capoeira e yoga. No “campinho” do acampamento, acontece o futebol.
“Aqui todo mundo entra de uma forma e sai de outra. Não estamos aqui ocupando por ocupar”, ressalta Sara Juliana, uma das coordenadoras da frente cultural.
Na opinião de Francisco Rumalt Alves, pela cultura também se fortalece a resistência. “Quando começamos a cantar música, todo mundo começa a cercar a gente, a cantar e a pular. Vemos aquela energia, todo mundo é muito bem acolhido. Isso é resistir, nunca perdemos nosso sorriso. Estamos aqui fazendo nossa luta, sendo protagonista da nossa própria história. Aqui todo dia você vai pra guerra”.
Despejo e perseguição
Os moradores do Marielle Vive enfrentaram e venceram uma primeira batalha judicial há um ano, após a suspensão de um pedido de reintegração de posse feito pelo grupo Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, que possui um contrato de arrendamento das terras para criação de gado.
Na análise do Tribunal de Justiça, que cancelou o primeiro pedido de despejo, não houve comprovação da posse por parte dos supostos proprietários.
Com a ajuda da Defensoria Pública, o MST luta para que o terreno que abriga mais de duas mil pessoas seja destinado à reforma agrária. Patrícia Maria, uma das coordenadoras do acampamento e da direção estadual do MST em São Paulo, explica que o movimento “deu vida a um espaço que era morto”.
“Essa área era totalmente improdutiva. Não tinha nenhum vestígio de produção, nem de alimento e nem de gado. Essa área estava abandonada há mais de 20 anos”, destaca Patrícia.
A Defensoria Pública, os advogados do MST e os acampados agora enfrentam um novo pedido de reintegração de posse.
“Conseguimos uma suspensão dessa reintegração até dia 2 de dezembro. Estamos com a produção, com a organização interna e com esse processo jurídico para que o Estado reconheça que estamos em um processo justo. Está previsto na Constituição brasileira que toda terra improdutiva deve ser destinada à reforma agrária. Esperamos que o desembargador considere toda essa luta por terra das famílias e dê mais um prazo ou a permanência das famílias aqui no Marielle Vive”, explica Patrícia.
Outras dificuldades
Além da ameaça de despejo, os moradores enfrentam outros problemas. Por exemplo, os caminhões-pipa de água enviados pela prefeitura de Valinhos não atendem toda a demanda dos acampados. Há também relatos de não atendimento na rede de saúde pública da região, por não aceitarem o endereço do acampamento como residência oficial.
Há ainda uma denúncia mais grave: policiais militares e guardas municipais abordam com frequência os moradores, sem justificativa. Eles relatam que já tiveram documentos rasgados, como a carteirinha de identificação e controle do próprio acampamento.
Em agosto deste ano, o Conselho Estadual de Defesa de Direitos da Pessoa Humana (Condepe) publicou um parecer que registrou as denúncias afirmadas à reportagem do Brasil de Fato. Mesmo após o posicionamento do órgão, os abusos teriam continuado.
Na visão de Patrícia Maria, a força para que os sem-terra continuem a resistir em Valinhos é também fomentada pela esperança.
“Temos a esperança de mudança. A esperança de que as pessoas tenham direito à terra, que consigamos um dia, nesse país, fazer reforma agrária e as transformações sociais necessárias para um Brasil mais justo. A Marielle, em vários momentos, nos deu essa força. Todos nossos trabalhadores tombados… Mas o seu Luís também”, diz, entre lágrimas