Publicado originalmente no jornal GGN
POR ARTUR ARAÚJO E GILBERTO MARINGONI
Uma ótima proposta entrou em circulação. Um convite à ação unitária dos trabalhadores e das forças progressistas está aí. É o Plano Emergencial de Emprego e Renda (PEER), elaborado sob coordenação da Fundação Perseu Abramo. (https://pt.org.br/plano-emergencial-de-emprego-e-renda/), entidade ligada ao PT.
São nove tópicos que provocam espanto, de tão óbvios (“como não pensei nisso antes?”) e escritos em linguagem de gente. Ou seja, sem economês, abstracts ou notas de rodapé.
Para recuperar e ampliar a interlocução da oposição com o povo (e para dar norte e volume à própria oposição), o plano propõe:
- Lançar programa de geração de 3 milhões de novos postos de trabalho em 6 meses e de 10 milhões de empregos novos ao longo de sua execução;
- Retomar obras paradas;
- Reativar o Minha Casa Minha Vida;
- Aumento real do salário mínimo;
- Expandir o bolsa-família;
- Renegociar as dívidas das famílias;
- Usar os ganhos do pré-sal para reativar a indústria;
- Reativar o BNDES;
- Corrigir a tabela do Imposto de Renda
O PEER tem pontos discutíveis, entre os quais a proposta de uso parcial de reservas cambiais para dispêndios em reais e certos cacoetes fiscalistas (“não impactar o resultado primário” e não explicitar a incontornável exigência de revogação da Emenda Constitucional 95, a que estabeleceu o famigerado “teto de gastos estatais”). Tais poréns, porém, não invalidam seu acerto no atacado: ser um instrumento efetivo para recuperação de relações sólidas e perenes entre as atuais oposições e a maioria dos brasileiros, visando mobilização social reivindicatória ampla e poderosa.
Antes de nos determos no Programa, vale uma pequena reflexão.
Como e quando a esquerda perdeu apoio?
Recolocando a pergunta: quando e como a esquerda teve muito reduzida sua presença nos corações e mentes da maioria do povo brasileiro, depois de ter vencido quatro eleições presidenciais e incontáveis disputas nos estados e municípios?
O governo federal foi tomado pelo golpe em 2016, mas a gênese do rompimento de laços se dá três anos antes, nas ruas, nas manifestações de junho de 2013.
A surpresa que provocaram já denotava uma “falha de radar”, fruto de um afastamento das lideranças políticas e dos quadros de gestão em relação à vida cotidiana nas cidades. Durante o processo, não houve a percepção da riqueza potencial de um movimento social que era, inicialmente, a busca da “vida melhor da porta de casa para fora”, um “movimento do quero mais” e, melhor ainda, um brado de “quero mais Estado provedor”.
Desde então, a esquerda viu parte substancial de sua base social de massas gradualmente migrar para a área de influência da direita. Esta, demagogicamente, alardeava que o problema central do país estava na “corrupção do PT”. Com um discurso tão fácil quanto duvidoso, ganhou espaço na opinião pública diante de hesitações do governo federal.
O empobrecimento generalizado – resultante da depressão provocada a partir de 2015 e renitente desde então – e a contínua redução quantitativa e qualitativa dos serviços prestados pelo Estado provocaram rompimento da credibilidade e da sustentação das forças progressistas junto a boa parte da população mais pobre. Quando o bolsonarismo irrompeu com estardalhaço, embutindo em seu discurso moralista, retrógrado, ultraliberal e antidemocrático uma esperança de “dias melhores do que isso tudo que está aí”, havia território pré adubado para que vicejasse, crescesse, fincasse raízes.
A esquerda deixara de ser vista, pela maioria, como rota natural para uma vida material menos ruim.
Quando e como recuperar o que foi perdido?
Não é possível derrotar o bolsonarismo sem que haja deslocamento substantivo da opinião pública que se colocou “contra tudo o que está aí” e sem que se supere o “ânimo antissistêmico” provocado e cavalgado pelo bolsonarismo. Se não houver alteração da percepção popular sobre os reais objetivos do governo da extrema-direita, não há “atalho institucional” que resolva as crises de forma positiva para o povo.
É pouco provável – e sondagens de opinião revelam isso – que dezenas de milhões de brasileiros desesperançados tenham comprado pelo valor de face o cardápio de valores reacionários e anticivilizacionais do bolsonarismo. Liberação do porte de armas, homofobia, misoginia, assassinatos “legais”, ataque reiterado à defesa do meio ambiente são tópicos majoritariamente rejeitados.
A expectativa de vida melhor certamente é o desejo subjacente à aposta política que a maioria fez em 2018. E é principalmente aí que o PEER acerta, ao ir direto ao ponto e propor algo compreensível para qualquer um.
Recompor e reconquistar base social é arte refinada. Não se faz de afogadilho e nem com proposições mirabolantes. São necessárias duas ações conjugadas:
- Associar-se de fato aos interesses, necessidades e desejos materiais imediatos dos trabalhadores, com ênfase em emprego, salário e serviços públicos minimamente decentes, propondo caminhos de solução urgente;
- Demonstrar com credibilidade que um governo sob comando econômico do ultraliberalismo não o fará, a despeito de esperanças ou até mesmo promessas;
O PEER é a primeira proposição globalmente correta do campo das oposições desde a vitória eleitoral do bolsonarismo, tanto pelo foco na vida cotidiana como pela formalização de reivindicações que materializam a melhoria dessa vida.
É decisivo congregar, em torno de sua defesa e da exigência de sua aplicação emergencial, todas as forças políticas e sociais interessadas na recolocação do Brasil nos trilhos do desenvolvimento com distribuição de renda e redução acelerada de desigualdades.
Agir já
O PEER não pode ser tratado como mero “papel pintado”, tem que ser guia de ação, orientação de organização e mobilização sociais.
Menos ainda deve ser tratado como algo de “parte do PT”, só “do PT”, só “dos partidos de esquerda”, só “dos partidos de oposição”. Pode e deve ser uma plataforma inicial de denúncia, debate, organização, mobilização e ação reivindicatória do povo brasileiro.
Adicionalmente, é uma via para reduzir significativamente o impacto de práticas e concepções que muito têm atrapalhado a reconexão das oposições com a maioria da sociedade: o partidismo exacerbado, uma forte obsessão superestrutural, o vício na dinâmica de “bolhas e redes”, o institucionalismo como linha dominante, a ausência de empatia explícita com os dramas do dia a dia dos trabalhadores.
Compreendido o potencial organizador e mobilizador do Plano Emergencial, tornam-se evidentes três tarefas imediatas a serem desempenhadas, conjuntamente, por todas as forças progressistas do Brasil:
- Escolher e executar, com governadores e prefeitos do campo oposicionista, ações imediatas de aplicação do PEER em estados e municípios (frentes de trabalho e programas de auxílio aos desempregados são as iniciativas mais óbvias);
- Dar prioridade total, na atuação das bancadas federais, à disputa congressual sobre a nova legislação do salário mínimo;
- Criar uma dinâmica unitária de atuação – envolvendo partidos políticos, as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, todas as centrais sindicais, os principais movimentos sociais e todas as entidades e organizações da sociedade civil que se disponham à soma – tanto para a popularização do conteúdo do PEER como, principalmente, na organização do movimento de reivindicação de sua aplicação;
Trata-se de gerar, a partir da exigência feita ao governo federal de imediata adoção das propostas do Plano Emergencial (e a partir da mais do que esperada recusa de um governo ultraliberal e autoritário em fazê-lo), uma potente onda de oposição popular ao bolsonarismo, ponto de partida insubstituível para uma solução das crises superpostas porque passa o país que seja efetivamente favorável à maioria dos brasileiros.